VIDA ATRAVÉS DA MORTE

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INTRODUÇÃO – A “CARTA MAGNA” DA HUMANIDADE

O AUTOR destas notas gostaria muito de recomendar ao leitor um estudo minucioso desta epístola, em oração, como preparação para todo o conhecimento das Escrituras. Lembro-me bem do benefício que obtive por haver, durante quase dois anos, deixado de lado todas as outras leituras e estudado esta epístola junto com mais algumas pessoas. Isso foi há cerca de quarenta anos, quando ainda jovem.

Não nos surpreendemos com fato de ela conter um alicerce tão sólido da verdade, quando nos lembramos de que foi escrita à assembléia situada naquela que era a metrópole do mundo de então.

É importante e de real auxílio que, ao ler qualquer um dos preciosos livros ou epístolas das Sagradas Escrituras, se observe o caráter e o plano de cada livro, além de sua ordem e divisões. Assim, fica claro que o objetivo do Espírito Santo nesta epístola foi revelar o relacionamento de Deus com o homem, e do homem com Deus — a maneira como Deus poderia ser Justo em justificar o homem. É este o fundamento de toda a verdade.

O leitor atento logo irá perceber as três divisões da epístola. Os capítulos 1 ao 8 revelam Deus, o Justificador; o evangelho de Deus aos judeus e gentios, sem distinção — a mesma graça igualmente dispensada a cada um. Do capítulo 9 ao 11 é mostrado que Deus não Se esqueceu de Suas promessas para Israel, mas que, em seu tempo determinado, todas elas se cumprirão para eles como nação. O capítulo 12, e os seguintes, contém a parte didática.

Há, todavia, uma subdivisão de grande importância nos oito primeiros capítulos. Até o capítulo 5, versículo 11, é tratada a questão da justificação dos pecados; então, a partir daí até o final do capítulo 8, o assunto está mais relacionado à justificação e libertação do pecado. Passemos agora para o primeiro capítulo.

CAPÍTULO 1 – UM EVANGELHO DE PODER PARA O HOMEM MORIBUNDO

“PAULO, servo de Jesus Cristo.” (Rm 1.1) Ele não era um servo ligado a qualquer sociedade ou partido, mas um servo de Jesus Cristo. Quão poucos podem repetir, juntamente com Paulo, estas simples palavras! E quão importante é que possam fazê-lo, isto se a intenção for de servir de um modo que agrade a Cristo. Será que você já analisou este aspecto em relação a toda a sua vida e ao seu serviço para Deus? É isto o que fará diferença no dia da recompensa. “Chamado para apóstolo” seria melhor traduzido como “apóstolo por chamado”. Quando o Senhor Jesus chamou a Paulo, não foi para que ele fosse aos outros apóstolos para ser ensinado ou preparado por eles, ou ainda ordenado para ser um apóstolo; não, ele foi constituído apóstolo imediatamente, e sem que se fizesse uso de qualquer autoridade humana; ele foi chamado a atuar e pregar como um apóstolo por ser um apóstolo, e não para se tornar um. (Veja também Atos 26.15-19; Gálatas 1.10-16.) Foi assim que Paulo foi “separado para o evangelho de Deus”. (Rm 1.1) Bem sabia o Espírito que na própria Roma tudo isso seria invertido. Sim, este primeiro versículo é de grande significado para nós, se quisermos fazer a vontade de Deus. Lembre-se: Paulo já era apóstolo há algum tempo quando, em Atos 13.1-4, o Espírito o separou e o enviou, com a aprovação dos anciãos, em uma viagem especial de serviço.

Vemos aqui, então, Paulo como servo de Jesus Cristo, um apóstolo por chamado ou vocação, separado para o evangelho de Deus. Esta palavra, “separado”, é bastante abrangente. Separado do mundo, do judaísmo e da lei, para as gloriosas boas novas de Deus. Não é a igreja o assunto desta epístola, mas o evangelho de Deus. A igreja não era o assunto da promessa, mas o evangelho sim: “O qual antes havia prometido pelos Seus profetas nas Santas Escrituras”. (Rm 1.2) Sim, as Escrituras, desde Gênesis 3, contém abundantes promessas do evangelho de Deus, “acerca de Seu Filho”, Jesus Cristo, nosso Senhor. (Rm 1.3) Cada promessa tinha em vista a descendência, que é Cristo. É bom que guardemos isto: O evangelho não é algo acerca de nossos feitos ou sentimentos, mas “acerca de Seu Filho”, Jesus Cristo, nosso Senhor. Que esta bendita Pessoa seja sempre o princípio e o fim do evangelho de Deus que pregamos!

Há, então, só duas partes no verdadeiro evangelho: a obra consumada por Jesus na carne; e Sua ressurreição de entre os mortos. “Que nasceu da descendência de Davi segundo a carne.” (Rm 1.3) Nele, como Filho de Davi, foi cumprida toda a promessa. Que manifestação do amor de Deus — o Santo de Deus ter sido feito carne; tornando-se verdadeiramente Homem e descendo de Sua eterna glória para o meio de uma raça caída, culpada, sob pecado e juízo, e, naquela condição de humanidade sem pecado, ter ido até a cruz! Ele próprio, tão puro e, no entanto, ser feito pecado, para ir até a morte carregando o juízo extremo que o pecado merecia. Sim, ir até a morte, livrando-nos do direito e poder que ela tinha sobre nós — ser entregue por causa de nossas iniquidades.

Devemos encontrar nisto o grande tema de nossa epístola — a morte expiatória de Jesus em seu duplo aspecto, de propiciação e substituição. Mas, apesar de haver Se tornado homem em aparência de carne pecaminosa — mas sem possuir uma humanidade caída ou pecaminosa — Ele não Se corrompeu. Ele sempre foi o Santo de Deus, e foi deste modo, determinado, ou “declarado Filho de Deus em poder, segundo o Espírito de santificação, pela ressurreição dos (ou “dentre os”) mortos”. (Rm 1.4) Contemplemos, então, o Filho de Deus, puro e imaculado, em toda a extensão de Seu andar aqui; Santo não apenas em Seus benditos atos, mas em Sua natureza, segundo o Espírito de Santidade. Assim, embora cercado pelo mal, Ele andou em amor, compartilhando conosco de toda a tristeza decorrente do pecado; sendo tentado de fora para dentro em todos os aspectos que também o somos, muito embora, em Si mesmo, a Sua santa natureza fosse inteiramente separada do

pecado. Isso tudo ficou expresso pelo fato de que, após completar nossa redenção, Ele foi, por Deus, ressuscitado de entre os mortos. A própria morte não tinha nenhum direito sobre Ele — Ele não podia ser retido por ela.

Uma vez que Ele era Santo segundo o Espírito de Santidade, era mister que Deus, em justiça, O ressuscitasse de entre os mortos e O recebesse em glória. Ele glorificou a Deus na natureza humana e agora, como Homem, está ressuscitado de entre os mortos segundo o Espírito de santidade; está agora no céu como o Homem que glorificou a Deus. É bom que se entenda claramente o que Ele é em Si mesmo, para que então se possa compreender melhor o que Ele fez por nós e o que Ele é para nós agora, ressuscitado de entre os mortos. Esperamos poder apresentar estas verdades de forma detalhada mais adiante. Foi deste Santo ressuscitado de entre os mortos que Paulo veio a receber “graça e o apostolado, para a obediência da fé entre todas as gentes pelo Seu nome”. (Rm 1.5) Isto é algo importante de se ressaltar: por mais que Paulo fosse um apóstolo, tudo era por graça recebida. Porventura não tinha sido o Senhor Quem brilhara no caminho de Paulo, em puro e livre favor, justamente quando este se encontrava furioso — sim, excedendo-se em fúria — contra Cristo? Acaso não havia sido Ele Quem, em um gratuito e imerecido favor, chamara a Paulo, fazendo dele Seu apóstolo escolhido para ir aos gentios? E não é este o mesmo princípio que vale para todos os casos? Não importa qual seja o serviço que possamos estar fazendo para Cristo — acaso não se trata da mesma graça, do mesmo livre favor?

Era assim que o apóstolo via os santos em Roma; a mesma graça havia sido demonstrada a eles. “Entre as quais sois também vós chamados para serdes de Jesus Cristo.” (Rm 1.6) Assim brilha a graça em todo o seu esplendor. Aquele que encontrou Saulo em seu caminho para Damasco, o próprio Jesus Cristo, como Senhor, havia chamado a cada crente em Roma. “A todos os que estais em Roma, amados de Deus, chamados santos: Graça e paz de Deus nosso Pai, e do Senhor Jesus Cristo.” (Rm 1.7)

A simples introdução, pelos tradutores, de duas palavras em algumas versões, “chamados para serdes santos”, muda completamente o significado desta importante passagem, e tem sido a causa de sérios enganos no que se refere à santidade. O significado aqui é o mesmo da palavra que é usada no primeiro versículo: “chamado (para ser) apóstolo”; ou, “um apóstolo por chamado”. Assim como a palavra “santo” significa “santificado”, também a expressão significa “santificado por chamado”. Não “chamados” para procurar alcançar santidade — o que é um engano comum — mas, da mesma forma como Paulo foi constituído um apóstolo pelo Senhor que o chamou, assim também todos os crentes em Roma foram feitos santos por chamado. Foi essa a base sobre a qual eles foram exortados a caminhar: em conformidade com aquilo que já eram. Todo crente é santo por chamado, santificado por chamado. É nascido de Deus, participante da natureza divina, a qual é santa. O cristão é santo pelo novo nascimento. Ele está morto com Cristo, ressuscitado em Cristo — sim, Cristo, que passou através da morte, e que é a ressurreição e a vida, é a vida do cristão. “Quem tem o Filho tem a vida.” (1 Jo 5.12) E se tem a vida do Santo de Deus, esta vida, da qual o crente é agora participante, é uma vida tão santa quanto eterna. Todos os crentes têm a vida eterna e, por conseguinte, todos têm uma vida santa. Tentar alcançar, por quaisquer meios, uma ou outra coisa por merecimento é não compreender em sua totalidade a nossa vocação e nossos elevados privilégios.

Toda a Escritura proclama esta verdade. A exortação quanto a ser santo está baseada neste princípio: “Como filhos obedientes… como é Santo Aquele que Vos chamou sede vós também santos em toda a vossa maneira de viver, porquanto escrito está: Sede santos, porque Eu sou Santo”. (1 Pd 1.14-16). Sim, é por terem sido introduzidos em uma viva esperança — mantidos pelo poder de Deus por serem nascidos de Deus — que os crentes, como filhos, têm purificado suas almas em obediência à verdade. Em suma, já que eles eram santos por chamado e por natureza, e possuíam o Espírito Santo, deviam procurar ser santos em suas vidas e em seu proceder.

João revela a santidade da nova natureza como nascida de Deus. “Qualquer que é nascido de Deus não comete pecado.” (1 Jo 3.9) Em cada epístola será encontrado, em primeiro lugar, a vocação santa, vindo depois o andar santo como resultado (compare 1 Tessalonicenses 1.1 com 5.23). É importante notar o lugar que a palavra ocupa, aplicada pelo Espírito Santo, tanto no novo nascimento como na santidade prática. “Segundo a Sua vontade, Ele nos gerou pela palavra da verdade.” (Tg 1.18) “Santifica-os na verdade: a Tua palavra é a verdade.” (Jo 17.17) Quão triste é vermos tudo isso colocado de lado em nossos dias, e os homens, aos milhares, tentando se tornar santos por meio de sacramentos e cerimônias. E não somente eles, mas muitos dos que escrevem e ensinam sobre santidade ignoram totalmente aquilo que todo cristão é feito por vocação e novo nascimento, e por ser feito habitação do Espírito Santo. Não há dúvida de que seja isso a causa de grande fraqueza, engano e de um andar que deixa muito a desejar. Não nos deixemos vagar indiferentes também por cima destas preciosas palavras: “Graça e paz de Deus nosso Pai, e do Senhor Jesus Cristo”. (Rm 1.7) Que mudança do judaísmo! — o livre favor de Deus nosso Pai, e do Senhor Jesus Cristo, e paz a todos os amados de Deus em Roma. Será que nossas almas penetram nisto? Ao invés da lei exigindo, com justiça, a perfeita obediência da parte do homem, temos agora perfeita paz com Deus, fundamentada no princípio do livre e imerecido favor. Israel, se tivesse sido fiel, tão somente teria conhecido a Deus como Jeová; nós O conhecemos como Pai. Veremos, nesta epístola, como Sua graça e paz podem fluir livremente para nós em perfeita justiça.

Como esta epístola revela o terreno onde o pecador encontra-se diante de Deus, podemos notar que a primeira coisa pela qual o apóstolo dá graças a Deus, por intermédio de Jesus Cristo, por eles todos, é esta: “Por todo o mundo é anunciada a vossa fé”. (Rm 1.8) A fé tem, assim, o primeiro lugar. Amado leitor: será que a sua fé é bem evidente, ou será que ainda não ficou bem claro se você realmente crê em Deus? Este é o primeiro ponto que deve ficar claro; tudo o mais será uma consequência disto. Vemos que, se você crê em Deus, então é capaz de dizer: “Sendo, pois justificados pela fé, temos paz com Deus, por nosso Senhor Jesus Cristo”. (Rm 5.1) Pode você dizer isto com inteira confiança? Se assim for, então beba daquele manancial de graça e paz que flui perene de Deus nosso Pai, e do Senhor Jesus Cristo.

Que exercício de coração era aquele para Paulo! Ele diz: “Porque Deus, a Quem sirvo em meu espírito, no evangelho de Seu Filho, me é testemunha de como incessantemente faço menção de vós, pedindo sempre em minhas orações”. (Rm 1.9,10) Que profundo amor para com aqueles que ele nunca havia visto! Não se tratava de um mero serviço exterior, mas “em meu espírito”. Tudo feito para Deus no evangelho de Seu Filho. Será que é assim também conosco, ou, em nosso caso, tudo não passa de mera e fria imitação? Porventura não era esse o segredo do sucesso de Paulo? E se faltar isso em nós, não é certo que fracassaremos?

Paulo desejava muito ver os santos em Roma, mas até então tinha sido impedido. Vemos aqui uma prova da sabedoria e antecipação de Deus. Se Paulo ou Pedro tivessem fundado a assembléia em Roma, que desculpa não teria sido isto para a, assim chamada, sucessão apostólica! Não há evidência quanto a quem o Espírito Santo possa ter usado na formação daquela importante assembléia. Não há evidência de que qualquer apóstolo tenha estado ali naquela ocasião, muito embora a fé daquela assembléia, ou melhor, de todos os chamados santos, era anunciada e bem conhecida de todos. É também notável que não sejam chamados de igreja em Roma, como acontece nas outras epístolas.

Paulo desejava ter mútua comunhão com eles, e colher algum fruto entre eles, fosse pela conversão de almas ou pela comunicação de algum bem espiritual àqueles que já tivessem sido levados a Cristo. Com tamanho tesouro, como é o evangelho, colocado em suas mãos, ele se sentia devedor em compartilhá-lo com todos, tanto judeus como gentios. Ele chegava a dizer: “Quanto está em mim, estou pronto para também vos anunciar o evangelho, a vós que estais em Roma”. (Rm 1.15) Que completa prontidão e, ainda por cima, na mais real dependência de Deus somente. Se ele tivesse sido servo de homens, teria sido preciso receber uma convocação dos mesmos para pregar em Roma, ou então ter algum tipo de autorização humana. Mas não há tal idéia aqui. E por que não poderia ser assim também agora? Paulo podia dizer: “Estou pronto”. Sim, sim, com o mundo atrás de si, podia dizer: “Estou pronto tão logo meu Deus abra o caminho”. Oh, onde encontraremos hoje pessoas como Paulo? Que Deus possa nos despertar, enquanto pensamos no andar daquele devoto servo de Deus.

Começamos agora a nos aproximar da questão: O que é o evangelho? “Porque não me envergonho do evangelho de Cristo, pois é o poder de Deus para salvação de todo aquele que crê; primeiro do judeu, e também do grego.” (Rm 1.16).

A razão pela qual ele não se envergonha do evangelho é colocada de forma clara. A lei mandava, mas não tinha nenhum poder para libertar do pecado; não, ela fora dada para que abundasse, não o pecado, mas a ofensa. Mas, em contraste direto, o evangelho é o poder (não do homem, mas) de Deus, para a salvação. Há um enorme significado nisto. Vamos tentar tornar isto claro aos nossos jovens leitores, usando alguns exemplos.

Você já deve ter lido e escutado muitas coisas que debilitam esta verdade, pois há muita pregação que fala ao pecador que ele deve abandonar seus pecados e separar-se deles antes de ir a Deus e receber o perdão dos pecados e a salvação. Isto pode parecer bem razoável e plausível. Tome este exemplo: Vamos nos colocar um pouco acima das cataratas do Niágara. Repare como o rio corre tranquilo! Plano como um vidro, e quanto mais perto das quedas, mais plano ele fica. Um barco é visto descendo pela corrente. Há dois homens nele. Eles escutam o crescente bramido das pavorosas quedas. Um está consciente de seu perigo: mais alguns minutos e o barco despencará. O outro parece estupefato. Ambos estão igualmente perdidos; ambos estão no mesmo barco navegando tão suavemente rumo à completa destruição. Agora chame-os; tente anunciar-lhes o evangelho do homem. Diga a eles que abandonem aquele barco; que deixem aquele poderoso rio; que venham para a margem antes que despenquem, e que, se fizerem assim, você irá ajudá-los!

Homem, você está lhes dizendo para fazer o impossível. Porventura não será isto zombar deles? Porventura não é cruel zombar deles desse jeito? Em um ou dois minutos eles estarão acabados. O que é preciso é poder para salvá-los.

Acaso não está o pecador, na correnteza do tempo, despencando para uma destruição muito pior? Sim, ele dirá, o poder do pecado me carrega. Ele desperta para seu perigo, para a morte e o juízo ao alcance da mão. Ele escuta o bramido; mas será que pode salvar-se a si próprio? Será que pode sair do rio? Se puder, não precisa de um salvador. Uma boa notícia, para aquele homem descendo pela correnteza fatal, seria chamá-lo e assegurar-lhe que há Alguém pronto e capaz de salvá-lo completamente. Sim, e é assim que Deus fala ao pecador que está perecendo perdido e culpado, conforme iremos ver mais adiante: “Porque todo aquele que invocar o nome do Senhor será salvo”. (Rm 10.13)

Tome outro exemplo. Você escuta o súbito clamor de “Fogo, Fogo!” Você não anda mais que poucos metros e vê um prédio incendiando-se. As chamas saem de todas as janelas do andar de baixo. Sabe-se que há algumas pessoas no quarto andar, as quais encontram-se dormindo ou desmaiadas pela fumaça. Se elas tiverem poder para escapar, não há necessidade de se tentar um resgate. Mas a escada é colocada de forma a alcançar a janela. Veja agora aquele hábil e corajoso bombeiro. O que é que ele faz? Será que meramente diz aos de dentro que devem primeiro sair da casa incendiada que, então, irá salvá-los? Não; ele sobe pela escada, quebra a janela, e entra na cena do perigo. Ele os traz para fora: estão salvos. O mesmo acontece em uma tempestade no mar. O navio avariado está afundando rapidamente para sua final destruição, levando consigo sua pobre tripulação. De que serviria um barco que fosse salvá-los, se o capitão deste permanecesse, de longe, gritando para aqueles homens que perecem, que devem primeiro abandonar o navio destroçado e nadarem até a praia, para, então, serem salvos pelo salva-vidas? Assim é o evangelho do homem. O homem deve primeiro salvar-se a si próprio; e então Cristo o salvará. E o mais estranho é que os homens adorem e aceitem uma tolice como essa.

Todavia, o evangelho de Deus é totalmente oposto a isso: Ele enviou Seu Filho amado para buscar e salvar o que estava perdido. Sim, PERDIDO, assim como aqueles no barco, tão perto das ensurdecedoras cataratas. PERDIDOS, como os moradores do prédio incendiado. PERDIDOS, como aqueles marinheiros afundando com os escombros de seu navio. Sim, se os homens tão somente soubessem, e reconhecessem sua condição de perdidos e incapazes, eles reconheceriam que o evangelho do homem é uma completa tolice que ordena que eles se salvem a si mesmos e que, só então, Deus irá salvá-los.

Tome mais esta ilustração. Um homem foi julgado e considerado culpado. Ele está agora preso e condenado. Será que você iria dizer-lhe para sair daquela cela; para abandonar seus pecados, suas algemas, a prisão, e a sentença que já lhe foi dada; e então, mas só então, ele seria perdoado? Não seria isto uma cruel zombaria para um homem naquelas condições? Todavia é esta a verdadeira condição do pecador e, portanto, “não me envergonho do evangelho de Cristo, pois é o poder de Deus para salvação de todo aquele que crê”. (Rm 1.16) A pergunta no coração daquele que descobre que está navegando em direção à queda, ou aos recifes, ou que é um pecador culpado sob o juízo e sem forças para suportá-lo, é esta: Como posso ser salvo? Como eu, um pecador condenado, posso ser justificado? É esta, portanto, a verdadeira questão que é tratada e explicada na primeira parte da epístola. Sim, é esta a própria razão de Paulo não estar envergonhado do evangelho. “Porque NELE se descobre a justiça de Deus de fé” (ou, sobre o princípio da fé) “em fé, como está escrito: Mas o justo viverá da fé.” (Rm 1.17) Não se trata da justiça do homem, pois este não tem nenhuma. E como poderia tê-la se é alguém culpado e sob o juízo? E mesmo que a tivesse, seria justiça do homem e não de Deus.

Veremos que a justiça de Deus está em direto contraste com a justiça do homem. Ela nem poderia ser pela lei, pois Deus não pode estar sujeito à lei. Foi Ele quem deu a lei. Se o assunto fosse a “justiça de Cristo”, então seria uma outra verdade. Mas trata-se da justiça de Deus revelada, no evangelho, sobre o princípio da fé, “de fé em fé”. Ela foi repetidamente anunciada no Antigo Testamento, mas foi agora explicada, ou revelada. “E não há outro Deus senão Eu; Deus Justo e Salvador não há fora de Mim. Olhai para Mim, e sereis salvos, vós, todos os termos da terra.” “De Mim se dirá: Deveras no Senhor há justiça e força.” (Is 45.21-24) “Em Teu nome se alegrará todo o dia, e na Tua justiça se exaltará.” (Sl 89.16) Devemos ter em mente que a justiça de Deus é a primeira, e principal, questão tratada nesta epístola. Este é o assunto tratado em primeiro lugar; então vem o amor de Deus. Isto porque o amor de Deus não apaga a ira de Deus. A questão da justiça é imediatamente levantada, “porque do céu se manifesta a ira de Deus sobre toda a impiedade e injustiça dos homens, que detém a verdade em justiça”. (Rm 1.18) Essa ira ainda não foi derramada, mas não se pode ter dúvidas quanto à ira que há, da parte de Deus, contra toda a impiedade dos homens — contra o pecado. Ela pode ser vista no dilúvio, na destruição de Sodoma e no Santo de Deus tendo sido feito pecado por nós. Ela é também revelada no fato de que Ele virá em juízo, tomando vingança. O ímpio certamente será lançado no lago de fogo.

E será que sou um pecador culpado? Se assim for, de que proveito me seria contar só com o amor de Deus no dia da justa ira contra toda a impiedade? Deve, assim, ficar evidente que a primeira grande questão é a justiça de Deus em justificar o

pecador que nEle crê. Como é que Deus pode ser Justo em reputar um tamanho pecador como eu como justo diante dEle? Que tremenda questão!

Esta questão da justiça de Deus é tratada novamente no capítulo 3.21. Então, qual é o objetivo do Espírito nesta grande porção das Escrituras, que vai do capítulo 1.17 até o 3.21? Acaso não é, principalmente, descartar completamente toda a pretensão de justiça no homem, esteja ele sem lei ou sob a lei? Isto é algo que precisa ser feito, pois não existe nada a que o homem se apegue mais do que os esforços para estabelecer sua justiça-própria. Assim, cada alegação do homem é examinada.

O eterno poder de Deus foi manifestado na Criação e, uma vez mais, no dilúvio.

Com certeza, Deus era conhecido de Noé, e também de seus descendentes. Estes, “tendo conhecido a Deus, não o glorificaram como Deus, nem lhe deram graças”. (Rm 1.21) Pelo contrário, mergulharam na idolatria. Apostataram de Deus, até que Deus os entregou, ou abandonou. Por três vezes isto é repetido: “Pelo que também Deus os entregou às concupiscências…” (Rm 1.24); “Pelo que Deus os abandonou às paixões infames…” (Rm 1.26); “Deus os entregou a um sentimento perverso…” (ou “pervertido”) (Rm 1.28). Leia a terrível lista de impiedades nas quais mergulhou todo o mundo gentio. Onde é que havia justiça no homem? Abandonar é o ato judicial de Deus em juízo. Ele assim abandonou os gentios, e vemos em que se tornaram.

Sabemos também que quando os judeus rejeitaram completamente o testemunho do Espírito Santo, Deus os abandonou, no presente momento, como povo. Este será também o fim da cristandade professa, “porque não receberam o amor da verdade para se salvarem. E por isso Deus enviará a operação do erro, para que creiam a mentira; para que sejam julgados todos os que não creram a verdade, antes tiveram prazer na iniquidade”. (2 Ts 2.10) Portanto, o fato de Deus haver abandonado os gentios aos terríveis desejos de seus corações, prova sua completa apostasia de Deus. E toda a história secular corrobora esta descrição inspirada da impiedade humana.

Pode-se perguntar: Porventura não existiram legisladores, reis e magistrados, que tenham decretado leis contra a impiedade e punido os crimes? “Os quais, conhecendo a justiça de Deus (que são dignos de morte os que tais coisas praticam), não somente as fazem, mas também consentem aos que as fazem.” (Rm 1.32) Assim, tanto então, como agora, a maior impiedade é encontrada nos legisladores ou chefes. Como prova disto basta lermos qualquer dos historiadores da antiguidade. Se o homem é deixado a seu bel-prazer, quanto maior for o poder que tiver em suas mãos, maior será a sua maldade. É surpreendente vemos o grau de crueldade e horrível impiedade do paganismo. Tal era o mundo ao qual Deus, em misericórdia, enviou Seu Filho. A justiça era algo que não podia ser encontrado no mundo gentio. As multidões, como um só homem, corriam aos anfiteatros para saciar seus olhos com a cruel impiedade.

CAPÍTULO 2 – O INEVITÁVEL JUÍZO DE DEUS

A CONSCIÊNCIA deixa o homem inescusável. Há no homem um senso de responsabilidade e, devido à queda, um conhecimento do bem e do mal. O fato de um homem julgar o outro é uma prova disto: “Porque te condenas a ti mesmo naquilo em que julgas a outro; pois tu, que julgas, fazes o mesmo”. (Rm 2.1) E quão verdadeiro é isto, tanto acerca de judeus e gentios, como de cristãos

professos! E o homem não pode enganar a Deus. “E bem sabemos que o juízo de Deus é segundo a verdade sobre os que tais coisas fazem. E tu, ó homem, que julgas os que fazem tais coisas, cuidas que, fazendo-as tu, escaparás ao juízo de Deus?” (Rm 2.2,3) Que questão solene! Podemos julgar e punir a outros por suas más ações neste mundo, mas se formos colocados, com todos os nossos pecados, diante do juízo — e o juízo certamente virá, e será “segundo a verdade” — como poderemos escapar? A punição do mal em todas as nações prova que admitimos que o mal deva ser punido. Do mesmo modo, o justo governo de Deus exige que haja um julgamento após a morte. Preste atenção nisto. Leitor: Será que você pensa ser capaz de escapar do juízo de Deus? “Ou desprezas tu as riquezas da Sua benignidade, e paciência e longanimidade, ignorando que a benignidade de Deus te leva ao arrependimento?” (Rm 2.4) Quantos são os que estão agindo assim? No entanto, a maneira como o arrependimento é pregado tende a levar os homens a desprezarem e ignorarem completamente a maravilhosa graça de Deus. Muitos pregam o arrependimento como se fosse uma obra para a salvação, como se precedesse a fé nas riquezas da bondade de Deus. Mas é por conhecermos, e crermos na bondade de Deus em ter enviado Seu Filho amado para morrer por nossos pecados, que somos levados ao arrependimento. É isto que produz arrependimento em nós. Na verdade, é só pelo conhecimento das profundezas às quais Ele teve que descer para nos salvar, que podemos conhecer as profundezas de nosso pecado e culpa.

Desta forma, a bondade de Deus nos leva a uma completa mudança de atitude; a um completo juízo de nós mesmos, em profunda aversão aos nossos pecados e total confissão deles a Deus, produzindo em nós, ao mesmo tempo, uma completa mudança de pensamento acerca de Deus. Assim, a diferença entre verdade e erro é esta: Não é nosso arrependimento que nos leva à bondade de Deus, ou a torna válida para nós, mas é a bondade de Deus que nos leva ao arrependimento; que produz arrependimento em nós. Oh, cuidado para não desprezar a graça de Deus e acabar entesourando “ira para ti no dia da ira e da manifestação do juízo de Deus”. (Rm 2.5) Note bem que, ou é a bondade de Deus agora, e arrependimento aqui, ou então o justo juízo de Deus naquele dia reservado para a ira.

Alguns têm dificuldade para compreender o capítulo 2.6-29; outros distorceram estas afirmações como se ensinassem a salvação por obras. Se assim fosse, estaria em total contradição a todo o ensino da epístola. Então, o que é que aprendemos aqui? Primeiro, a justiça de Deus, em recompensar tanto o judeu sob a lei, como o gentio sem lei. Isto é clara e distintamente afirmado. Então, em segundo lugar, vem a pergunta: Acaso existe qualquer judeu ou gentio que atenda a estes requisitos de Deus para que possam ser, deste modo, recompensados?

Começamos, então, com a certeza de que, no dia da ira e revelação do justo juízo de Deus, Ele “recompensará cada um segundo as suas obras; a saber: a vida eterna aos que, com perseverança em fazer bem, procuram glória, e honra e incorrupção…” (Rm 2.6,7) Do mesmo modo, naquele dia, “tribulação e angústia sobre toda a alma do homem que obra o mal…” (Rm 8.9) É esta, portanto, a base do justo juízo no qual Deus irá agir: “No dia em que Deus há de julgar os segredos dos homens por Jesus Cristo, segundo o meu evangelho”. (Rm 2.16) A polícia sai às ruas e prende os homens, levando-os a julgamento por seus crimes públicos; mas porventura não é igualmente verdade que a Morte sai pelas ruas como um policial de Deus, para levar homens que, após a morte, terão julgados todas as coisas que fizeram em segredo? Poderá você enfrentar uma julgamento assim? Deus julgará em justiça. “Tribulação e angústia sobre toda a alma do homem que obra o mal.” (Rm 2.9) E tudo revelado — até as coisas ocultas!

É bom que se tenha isto em mente: Por ocasião daquele justo juízo não haverá como se escapar. Quando o homem é deixado à sua própria sorte, acaba afundando cada vez mais na prática do mal. Como já vimos, todo o mundo gentio afundou no mais grosseiro pecado. O que dizer, então, do judeu, o homem religioso? Sim, o que dizer do homem religioso; não seria ele superior em todos os aspectos? Ele repousa na lei, gloria-se em Deus — no único Deus verdadeiro.

Ele conhece a vontade de Deus, é instruído e é um instrutor: um confiante guia de cegos. Se ele conhece a vontade de Deus, e a faz; e tem a lei, e a guarda, será que isto não dará a ele ousadia no dia do justo juízo? Mas, e se ele não for alguém que faça o bem, mas sim um que transgride a lei, que vantagem terá em comparação com o gentio que não tem lei? Nenhuma; pelo contrário, sua situação é ainda pior. Então, como é que o judeu sob a lei pode se encontrar com Deus em juízo?

Leitor, se for esta a sua posição — um homem religioso sob a lei, desejando com toda a sinceridade guardá-la e, ainda assim, transgredindo-a; sabendo a vontade de Deus, e não a cumprindo — como é que você poderá encontrar-se com Deus

em justo juízo e, não importa o quão religioso você tenha diante dos homens, ter todos os seus segredos expostos para serem julgados? Acaso todos os seus esforços dão a você qualquer confiança para olhar de cabeça erguida para aquele dia de inevitável juízo? Todavia, o judeu tinha uma grande vantagem.

CAPÍTULO 3 – DIAGNÓSTICO E ANTÍDOTO

O JUDEU possuía os oráculos de Deus, assim como você. Que imensa vantagem é possuir a própria Palavra inspirada de Deus! E os oráculos de Deus haviam sido entregues a eles.

Vemos, no versículo 3, de que forma notável a fé é mais uma vez apresentada. A justiça de Deus sempre repousou sobre o princípio da fé. “Pois quê? Se alguns foram incrédulos, a sua incredulidade aniquilará a fidelidade de Deus?” (Rm 3.3) No entanto, o grosso da nação não creu, e até aqui nem a sua incredulidade, nem a sua injustiça mudaram a Deus — Ele permanece o mesmo; Ele continua leal aos imutáveis princípios de certo e errado; de outro modo, como poderia julgar o mundo? Ao deixar-se de lado a lei como meio de se obter justiça, isto pode ser distorcido, como alguns o fizeram e afirmaram que o apóstolo ensinava que devemos praticar o mal para que disto provenha o bem. Isto é energicamente condenado; a justiça de Deus permanece no julgamento de todos os que praticam o mal. O apóstolo apela agora para as próprias Escrituras dos judeus, e prova, a partir delas, que todos eram culpados: “Como está escrito: Não há um justo, nem um sequer” Não há ninguém que entenda; não há ninguém que busque a Deus”. (Rm 3.10,11)

Não podemos ignorar o fato de que as palavras do versículo 19 foram escritas para aqueles que estavam sob da lei. E que terrível descrição esta do homem sob a lei! Toda boca é, assim, fechada, e todo o mundo é culpado diante de Deus. Sim, repare bem que não se trata daquilo que o homem é diante de seus semelhantes, mas do que ele é diante de Deus. E se todos os que estão debaixo da lei, e todos os que não estão debaixo da lei, são culpados, o que pode a lei fazer pelo culpado? A própria perfeição da lei, como uma regra perfeita para o homem, pode tão somente condenar o transgressor da lei. Se um comerciante usa uma balança enganosa em sua loja, o que mais poderá fazer o teste de peso, executado pelas autoridades, senão condená-lo? O peso usado como padrão irá demonstrar o quão fora do padrão ele está; e se ele está fora do padrão, o teste de peso não poderá demonstrar que sua balança é justa. A lei não podia ir além disso, “porque pela lei vem o conhecimento do pecado”. (Rm 3.20) Portanto, são todos culpados, evidentemente, “por isso nenhuma carne será justificada diante dEle pelas obras da lei”. (Rm 3.20)

O homem é, assim, posto de lado, bem como todos os seus esforços e pretensões à justiça pelas obras da lei. “Mas agora se manifestou sem a lei a justiça de Deus, tendo o testemunho da lei e dos profetas.” (Rm 3.21) Trata-se de algo completamente novo e distinto de tudo o que provém do homem. Não se trata da justiça do homem, pois ele não a tem em qualquer medida. Que tremendo fato, que em todo este mundo não tenha sido encontrado um só justo! Não, nem mesmo um. Trata-se da justiça de Deus, em sua totalidade e aparte da lei — daquilo que Deus é em Si mesmo, e do que Ele é para o homem. Deus não poderia ter sido justo em justificar o homem por meio da lei, pois a lei podia tão somente condená-lo. O homem era culpado. Certamente Deus sempre foi justo em Seu proceder para com o homem — perfeitamente coerente com Sua própria glória. Mas agora a justiça é manifestada aparte da lei, embora testemunhada pela lei e pelos profetas. É esta, portanto, a revelação, “isto é, a justiça de Deus pela fé em Jesus Cristo para todos e sobre todos os que crêem; porque não há diferença, porque todos pecaram e destituídos estão da glória de Deus”. (Rm 3.22,23)

Com que clareza a fé em Jesus Cristo toma agora o lugar da lei, e isto para todos, tanto judeus como gentios!

Portanto, a justiça de Deus diz respeito ao que Ele é em Si mesmo, e ao que Ele é para nós. E isto aparte da lei; pois não há, e nem poderia haver, uma lei ou mandamento para Deus. Isso tudo provém totalmente de Deus. Ele amou de tal maneira a ponto de dar Seu Filho amado para que, por meio de seu sacrifício na cruz, pudesse ser eternamente justo em nos justificar, ou em nos reputar por justos.

“Sendo justificados gratuitamente pela Sua graça.” (Rm 3.24) Sim, reputados por justos graciosamente, sem nada que pudesse provir de nós, exceto crermos nEle — e até mesmo a fé é um dom de Deus: provém de Sua graça, Seu livre favor. Mas como pode Deus ser justo em nos justificar gratuitamente por imerecido favor, “pela redenção que há em Cristo Jesus”? (Rm 3.24) Não meramente justificados de toda acusação de pecado, por mais bendito que isto possa ser; não meramente abrigados do juízo, como Israel foi protegido, no Egito, pelo sangue do Cordeiro; mas redimidos, totalmente libertos, pela redenção que há em Seu precioso sangue.

Mas, dirá você, tudo isso é muito bendito, mas como saber se posso desfrutar disso? Como posso ficar assegurado de que isso se aplica a mim? Bem, uma vez que Deus é justo em nos justificar gratuitamente, pela redenção que há em Cristo Jesus, vamos investigar que redenção é esta, e como você pode saber que ela veio, e se aplica, a você.

O que é redenção? A emancipação, ou redenção, de todos os escravos de Trinidad-Tobago há alguns anos irá ilustrar o que é redenção. Uma grande importância foi paga, proposta pelo governo britânico, para a completa redenção dos escravos. Eles foram, por assim dizer, redimidos para sempre — emancipados para sempre, libertados da miserável escravidão.

Porém, quando a proclamação, ou as boas novas de redenção chegaram em Trinidad-Tobago, como os escravos poderiam saber se elas se aplicavam a eles? Vamos supor que um velho escravo, com muitas cicatrizes dos açoites e das correntes, dissesse: — Sim, não tenho dúvidas de que foram pagos milhões; não tenho dúvidas de que a proclamação de redenção, emancipação, e liberdade para sempre é boa e gloriosa; mas como posso saber se ela se aplica a mim?

O que você responderia? “Ora, você não é um escravo? Acaso essas cicatrizes não são prova disso? Acaso você não nasceu escravo? Se você fosse um homem livre, certamente não se aplicaria a você, mas uma vez que você é um escravo, ela deve se aplicar, e se aplica, a você; a proclamação de redenção é feita para você. Ao crer na proclamação agora mesmo, você fica, em perfeita justiça, livre para sempre.”

Não é isto o que você lhe diria? Ah, se nos colocássemos em nosso verdadeiro lugar, e reconhecêssemos nossa verdadeira condição como escravos de nascença, concebidos em pecado e formados em iniquidade, então toda a dificuldade para compreender isto iria se dissipar tão logo enxergássemos que a redenção se aplica a nós. Será que você já reconheceu, ou, será que você reconhece que, por natureza, você nasceu escravo do pecado, vendido ao pecado? Os pobres escravos de Trinidad-Tobago talvez pudessem fugir de seus senhores, mas você já deve ter percebido que é totalmente incapaz de escapar do pecado e de Satanás. Por acaso você já não tem alguma feia cicatriz deixada pelo pecado? Se você pensa, mau como você é, que Deus irá ajudá-lo a guardar a lei, e que no fim você poderá ter alguma esperança de chegar no céu, é porque não reconhece sua necessidade de redenção.

Se o governo britânico dispendeu uma soma tão grande, proposta pelo Parlamento, quanto maior não será o valor do resgate que Deus determinou em Seus conselhos eternos? Será que Ele decidiu dar prata ou ouro por sua redenção? Não; Ele decidiu dar Seu Filho

amado. Sim, Ele é Aquele “ao qual Deus propôs para propiciação pela fé no Seu sangue”. (Rm 3.25) Pobre e incapaz escravo do pecado: Esta redenção é para você. Se é esta a sua condição, ela só pode ser para você. Sim, o escravo que creu na proclamação estava livre a partir daquele momento. O mesmo se dá com você. Deus garante isso aos milhares que lêem estas linhas.

Querido jovem cristão, é da maior importância que compreenda isto: você não está apenas justificado gratuitamente (com todos os seus pecados perdoados e Deus não vendo mais iniquidade em você), mas você está também redimido pelo precioso sangue de Cristo. Sim, liberto daquela condição de escravidão para todo o sempre. Se aquela grande soma em ouro colocou os escravos em liberdade para sempre, porventura a propiciação infinita de Cristo não poderá nos libertar, nos redimir para sempre? Será que devemos nos permitir qualquer sombra de dúvida? Não; Ele Se entregou por nós — tudo por gratuito e imerecido favor. Não fizemos nada para nossa redenção; ela foi toda realizada antes mesmo que tivéssemos um desejo ou pensamento sequer de redenção. E agora escutamos as boas novas que são para nós, pobres escravos do pecado; cremos, e ficamos livres para sempre.

Glória, Glória eterna Seja Àquele que suportou a cruz.

Mas devemos inquirir mais de como a justiça de Deus é afetada em tudo isso. “Ao qual Deus propôs para propiciação pela fé no Seu sangue, para demonstrar a Sua justiça pela remissão dos pecados dantes cometidos, sob a paciência de Deus; para demonstração da Sua justiça neste tempo presente, para que Ele seja justo e justificador daquele que tem fé em Jesus.” (Rm 3.25,26) Você irá notar que Deus apresentou a propiciação de Cristo para declarar duas coisas. Sua justiça precisava ser revelada nestas duas coisas: em deixar impunes, em indulgência, os pecados que são passados; e em poder ser justo, e o Justificador daquele que tem fé em Jesus.

Cabe aqui alertar nossos leitores de um sério erro que normalmente é cometido com respeito à expressão “pecados dantes cometidos”, como se significasse os pecados que foram cometidos até nossa conversão a Deus; como se quizesse dizer que os pecados até nossa conversão teriam sido perdoados, ou remidos, pela propiciação de Cristo; e que Deus seria, por conseguinte, justo, pela morte de Cristo, em perdoar dessa maneira os pecados cometidos antes da conversão. Este erro leva o crente à completa confusão quanto aos pecados que possa vir a cometer depois da conversão; mais ainda, tal idéia deixa o cristão numa posição pior que a do judeu, pois este podia contar com outro dia de expiação, que acontecia a cada ano. Porém, se o sacrifício propiciatório de Cristo valeu somente para nossos pecados, ou expiou nossos pecados, até o dia de nossa conversão, então já não resta remédio para os pecados cometidos depois da conversão. Pois “já não resta mais sacrifício pelos pecados”. (Hb 10.26) Quem poderia ser salvo com uma idéia tão finita do sacrifício propiciatório de Cristo? O sacrifício único e infinito teve que valer para todos os pecados de um pecador finito, desde o primeiro até o último.

O que significa, então, esta passagem? Simplesmente isto: Deus passou por cima, em indulgência, dos pecados de todos os crentes antes que Cristo morresse; e agora Ele é o Justificador de todos aqueles que crêem, reputando-os por justos como se nunca houvessem pecado. Mas a grande questão era esta: Como Deus poderia ser justo em fazer ambas as coisas? Como poderia isto ser revelado, declarado, e explicado? Se não houvesse resposta a esta pergunta, como poderia qualquer alma ter paz com Deus?

Se todos eram culpados, como poderia Deus ser Justo em passar por cima dos pecados daqueles que creram, sejam judeus ou gentios? E se todos provaram ser culpados agora, se você foi provado como sendo culpado — como pode Deus declarar a respeito de você, como fez a respeito de Israel no passado, que Ele não viu, e não vê, iniquidade em você? Certamente Ele não poderia ser justo com base em qualquer coisa que fosse encontrada em nós, ou praticada por nós, sob a lei ou aparte da lei. É aqui que o olhar da fé deve pousar unicamente no sangue de Jesus — “para propiciação pela fé no Seu sangue”. (Rm 3.25) Isto por si só explica e declara a justiça de Deus, tanto no que diz respeito aos pecados dos crentes do passado, como dos nossos agora.

Lembremo-nos, sempre, de que, sobre o propiciatório, o sangue era colocado diante dos olhos de Deus! “E tomará do sangue do novilho, e com o seu dedo espargirá sobre a face do propiciatório, para a banda do oriente; e perante o propiciatório espargirá sete vezes do sangue com o seu dedo.” (Lv 16.14) Isso tinha que ser feito vez após outra; o sangue de um novilho tinha que ser espargido diante de Deus naquele propiciatório de ouro uma vez por ano. E também o sangue de outras vítimas precisava ser derramado com frequência. O mesmo não se deu com o sangue de Cristo; aquele sangue, uma vez derramado e espargido, não pode jamais ser derramado ou espargido novamente. Oh, minha alma, pense no que aquele sangue é para os seus pecados diante dos olhos de Deus! O sangue, espargido sobre o ouro, demonstra o que é o sangue de Cristo, atendendo, defendendo, declarando a justiça de Deus. Sim, Ele foi justo em justificar Davi mil anos antes do sangue ter sido derramado; tão justo quanto Ele é agora em nos justificar mil e oitocentos anos após ter sido derramado.* Era preciso que Jesus sofresse por ambos.

*O autor viveu no século 19. (N. do T.) Vemos assim o grande erro daqueles que dizem que a justiça de Deus é aquela pela qual Ele nos torna justos. Não; a justiça de Deus é aquela pela qual Ele próprio é justo, em considerar a nós, pobres pecadores, justos. A diferença é imensa. Se a voz daquela que a si própria se denomina “A Igreja” diz uma coisa, e a Palavra de Deus diz outra, em qual devo crer? Sem dúvida, na última.

“Ao qual Deus propôs para propiciação pela fé no Seu sangue, para demonstrar a Sua justiça pela remissão dos pecados dantes cometidos, sob a paciência de Deus; para demonstração da Sua justiça neste tempo presente, para que Ele seja Justo e Justificador daquele que tem fé em Jesus.” (Rm 3.25,26) Preste atenção a cada sentença. Por acaso não é a justiça de Deus que Ele seja Justo? Você crê em Jesus — que Ele glorificou assim a Deus por Seu sacrifício expiatório — que agora, neste tempo, por meio daquela morte, Ele é, em justiça, capaz de justificar todo aquele que crê? É Deus, dessa forma, revelado Justo à sua alma em considerar você como justo?

Portanto, já que a justiça é totalmente de Deus, através da redenção que há em Cristo Jesus, “onde está a jactância”? (Rm 3.27) Será que está nas obras que praticamos? Não, um pensamento assim está descartado. “Por qual lei? Das obras? Não; mas pela lei da fé.” (Rm 3.27) Já vimos, pois, que a fé encontra a justiça em Deus. Não posso, portanto, me jactar de ter sido, ou de ser, justo em mim mesmo, já que fomos provados como sendo culpados. Sabemos que isto é verdade, e, se depender da lei ou das obras, só podemos ser condenados. Não pode haver justificação baseada nisto, não importa o quanto nos esforcemos em consegui-la deste modo. Sendo assim, a justificação deve estar fundamentada em outra coisa. “Concluímos pois que o homem é justificado pela fé sem as obras da lei.” (Rm 3.28) O que mais poderia a Escritura concluir uma vez que todos são culpados, e que a justificação não depende do que somos para Deus, mas do que Ele é para nós revelado em Cristo? Não misture estas duas coisas. Deixe que sua salvação seja totalmente com base na fé — naquilo que Deus é para você.

Sermos justificado pela fé é o que Deus é para nós através de Cristo. As obras da lei estão fundamentadas naquilo que nós somos para Deus. Oh, graça sublime! Somos justificados por uma coisa (a fé), sem a participação da outra (a lei). E nisto a doutrina do “não há diferença” (Rm 3.22) fica plenamente mantida. Trata-se da mesma justiça de Deus para com todos, judeus ou gentios, sobre o princípio da fé, e por meio da fé.

Aqueles que afirmam que ainda estamos sob a lei a tornam nula, pois ela amaldiçoa os que se encontram sob ela, já que não a guardam. Aqueles que estavam antes sob a lei precisaram ser redimidos de sua maldição pela morte de Jesus. Sendo assim, se as Escrituras nos colocam sob a lei novamente, então seria preciso que Jesus morresse outra vez para nos redimir da maldição da lei. (Veja Gálatas 3.10-13; 4.4,5.) “Anulamos, pois, a lei pela fé? De maneira nenhuma, antes estabelecemos a lei.” (Rm 3.31) Jesus revelado aos olhos da fé, levando a maldição da lei transgredida, no lugar daqueles que se encontravam sob ela — se isto não estabelece as reivindicações da lei de Deus, o que mais pode fazê-lo? Mas se fôssemos novamente colocados sob a lei então suas reivindicações teriam que ser novamente estabelecidas, ou ela seria tornada nula.

CAPÍTULO 4 – O SUBSTITUTO PARA UMA RAÇA DE PECADORES

DEVEMOS ter em mente que não estamos tratando aqui da justiça diante dos homens. Para tratarmos disso teremos que nos voltar para a epístola de Tiago. Ali encontramos a questão da justificação de um ponto de vista completamente diferente. Um homem não é justificado diante de seu próximo pela fé, mas pelas obras, que provam a genuinidade de sua fé. (Veja Tiago 2.18-26.)

Pode ser que agora alguém pergunte: Se toda a raça humana foi achada culpada diante de Deus, judeus e gentios, sobre que princípio alguém poderia ser justificado? É claro que ninguém poderia ter sido justificado sobre o princípio da lei, aquilo que condena o culpado, e dois dos mais marcantes casos são citados como prova disso: ninguém menos do que Abraão, o próprio pai dos judeus; e Davi, o doce cantor de Israel. Um foi justificado quatrocentos e trinta anos antes da lei ter sido dada; o outro, cerca de quinhentos anos depois, e isso quando merecia sua maldição por uma terrível transgressão.

No que se refere a Abraão, se existisse alguém que pudesse ser justificado por obras, certamente seria ele; e se fosse diante dos homens, como está em Tiago, ele teria de que se gloriar, “mas não diante de Deus”. (Rm 4.2) Trata-se ainda da solene questão do homem diante de Deus. Bem, o que diz a Escritura acerca desse homem, antes que a lei tivesse sido dada a ele ou a qualquer um? “Creu Abraão a Deus, e isso lhe foi imputado como justiça.” (Rm 4.3) Esta é a resposta da Escritura e o princípio sobre o qual um homem pode ser justificado sem as obras da lei. Abraão creu em Deus, e isso (sua ) lhe foi imputado como, e não para, justiça.

Uma grande parcela da compreensão depende do verdadeiro significado da palavra que é traduzida como “imputado” neste capítulo. No original, significa “reconhecido como tal”, ou “estimado como tal”. O significado não é simplesmente o de “imputado” ou “colocado em conta” de uma pessoa; a palavra que tem este significado é encontrada somente duas vezes no Novo Testamento, em Romanos 5.13: “Mas o pecado não é imputado, não havendo lei”. Não é colocado em conta da pessoa como sendo uma transgressão da lei, quando nenhuma lei foi dada para que pudesse assim ser transgredida. Ela é traduzida melhor e mais corretamente em Filemon 18: “Se te fez algum dano, ou te deve alguma coisa, põe isso à minha conta“, ou seja, impute isso a mim. Vamos dar uma ilustração das duas palavras. Uma coisa é quando dizemos que determinada pessoa depositou um certo valor na conta de outra; foi colocado na conta dela. Outra, quando um nobre se casa com uma mulher pobre. Será ela considerada pobre depois disso? Ela não tem um centavo de si mesma, mas é considerada, ou reconhecida como, tão rica quanto seu marido; ela é judicialmente reputada assim, ou reconhecida assim. Abraão creu em Deus, e isso foi reconhecido como justiça. Talvez isto possa ser visto confirmado em Abel. “Pela fé Abel ofereceu a Deus maior sacrifício do que Caim, pelo qual alcançou testemunho de que era justo, dando Deus testemunho dos seus dons”, etc. (Hb 11.4) Em ambos os casos o princípio da fé é o mesmo. Abel creu em Deus, e trouxe o sacrifício. Abraão creu em Deus. Ambos foram considerados como justos. E isto não sobre o princípio das obras, não sobre o terreno do que Abraão ou Abel eram para Deus, mas Deus imputou-lhes a fé como justiça. “Mas aquele que não pratica, mas crê naquele que justifica o ímpio, a sua fé lhe imputada como justiça.” (Rm 4.5)

Outro dia encontrei um homem idoso, com cabelos brancos como a neve, e disse-lhe: “Você professou a Cristo, de um modo ou de outro, por muitos anos, e mesmo assim não sabe se tem vida eterna; você não tem certeza se está justificado e, se morrer, não tem a certeza de que vai partir para estar com Cristo.”

Seu idoso semblante descaiu; ele respondeu-me: “Isto é totalmente verdade.”

Permita-me, então, que lhe diga a razão disso. Você nunca chegou a ver o ponto de partida de Deus. Você tem se esforçado por todos esses anos, de um modo ou de outro, para ser piedoso, crendo que Deus justifica aquele que é piedoso. Você nunca chegou a crer que Deus justifica o ímpio, e é aí que está o ponto de partida. A piedade virá depois. “Mas aquele que não pratica, mas crê naquele que justifica o ímpio, a sua fé lhe é imputada como justiça.” (Rm 4.5)

Eu nunca antes enxerguei a coisa assim” Disse-me o velho homem. Pergunto agora a você, leitor, algo bem solene: Você já tinha visto isso antes, e crido em Deus que justifica o ímpio?

Talvez você tenha estado se esforçando há muito tempo para ocupar o lugar de um homem piedoso diante de Deus pelas ordenanças dos homens, e pelas assim chamadas boas obras, tentando por todos os meios falsificar esta passagem das Escrituras. Sim, com frequência leva-se toda uma vida de fracasso para fazer uma alma chegar a este verdadeiro ponto de partida de graça. Certamente deve ser baseado em algum princípio diferente da lei o fato de Deus poder justificar o ímpio. Não àquele que pratica, mas ao que crê.

Vamos ver agora a explanação inspirada, dada por Davi, a respeito deste assunto. “Assim também Davi declara bem-aventurado o homem a quem Deus imputa a justiça sem as obras, dizendo: Bem-aventurados aqueles cujas maldades são perdoadas, e cujos pecados são cobertos. Bem-aventurado o homem a quem o Senhor não imputa o pecado” (Rm 4.6-8); ou, “a quem o Senhor jamais imputará pecado”. (Rm 4.8 — Almeida Versão Atualizada) Não é que sejam considerados justos aqueles que nunca pecaram, pois todos pecaram; mas aqueles cujos pecados são cobertos, cujas maldades foram perdoadas. Nem se trata de somente os seus pecados passados terem sido cobertos pela morte expiatória de Cristo, mas temos esta declaração adicional da infinita graça, e isto em perfeita justiça, que é: “O Senhor jamais imputará pecado”. Certamente isto é maravilhoso, e está, ao mesmo tempo, em perfeita harmonia com toda a Escritura. Tal é a eficácia daquele único sacrifício; tal é o valor do sangue de Jesus, que nos purifica de todo o pecado. Não há mais necessidade de sacrifícios pelos pecados — mais nenhum; e Deus não se lembra dos pecados, os quais foram removidos de uma vez para sempre. (Hebreus 10; 1 João 1.7.)

Assim, no que diz respeito a imputar a culpa, ou os pecados, aos justificados, eles são considerados justos, tão justos como se nunca tivessem pecado. No que diz respeito à sua posição diante de Deus, o pecado não é de modo algum imputado ao homem justificado; ele é, assim, verdadeira e continuamente bem-aventurado. Acaso um amor como esse, uma salvação eterna como essa, iria fazer com que aquele que dela desfruta ficasse descuidado e dissesse: Continuemos, então, no pecado para que a graça possa abundar? Vamos tratar disso mais adiante. Mas acaso não é exatamente esta a verdade revelada aqui? Era completamente impossível para Deus ter justificado o ímpio deste modo sobre o princípio da lei; mas a propiciação, por intermédio do sangue do Filho eterno de Deus, explica a justiça de Deus em, dessa forma, não imputar os pecados àquele que crê.

Pode-se ainda perguntar: Será que aquela propiciação aplica-se ao futuro tanto quanto ao passado? É exatamente isto o que as Escrituras ensinam, e, por estranho que possa parecer, o conhecimento disto nos é dado para que não pequemos. “Meus filhinhos, estas coisas vos escrevo, para que não pequeis: e, se alguém pecar, temos um Advogado para com o Pai. Jesus Cristo, o Justo. E Ele é a propiciação pelos nossos pecados.” (1 Jo 2.1,2) E em outro lugar, falando acerca dos crentes: “(Cristo), levando Ele mesmo em Seu corpo os nossos pecados sobre o madeiro”. (1 Pd 2.24) E mais uma vez: “Havendo feito por Si mesmo a purificação dos nossos pecados, assentou-Se à destra da majestade nas alturas”. (Hb 1.3) Oh, tremenda graça — livre graça!

“Bem-aventurado o homem a quem o Senhor não imputa o pecado.” (Rm 4.8) Ele não o fará — não poderá fazê-lo — não poderá, em justiça, nos imputar pecado. Veremos isto ainda mais amplamente explicado à medida que seguirmos adiante.

Leitor: Você crê realmente em Deus? Sim, esta é a questão, enquanto lemos estas páginas das riquezas de Sua graça, cremos em Deus? Lembre-se de que estamos ainda só na porta de entrada do próprio evangelho de Deus. Acaso esta bem-aventurança vem somente sobre os que estavam debaixo da lei, isto é, os circuncisos, ou sobre os incircuncisos? Bem, tratava-se de algo evidente, que os judeus em Roma não poderiam negar, que a fé havia sido imputada como justiça a Abraão quando ele era ainda incircunciso, bem antes da lei ter sido dada. Que argumento arrasador, portanto, de que tudo deve ser por graça e não pela lei! E note bem, ele recebeu o sinal da circuncisão, um selo da justiça da fé que tinha quando era ainda incircunciso. Isto é, a circuncisão era uma marca de sua separação para Deus: ele era a primeira pessoa, o pai dela; mas, note bem, a circuncisão nada tinha a ver com sua justificação — ele foi considerado justo primeiro, totalmente aparte de todas as obras ou da circuncisão. E não dá-se o mesmo com todo crente? Sua separação para Deus e uma vida santa são um sinal de que ele já foi considerado justo primeiro, aparte da lei e das obras. Pois Deus o chama e o justifica enquanto ímpio. Quer dizer, é ali que Deus começa com o homem. Será que foi assim que Ele começou com você, ou você está procurando ser justificado por obras quando se tornar piedoso?

Há agora outro princípio de grande importância que nos é apresentado. A promessa depende claramente só de Deus, e esta foi dada a Abraão muito tempo antes da lei; portanto não poderia ser pela lei, mas pela justiça que vem da fé. O concerto do monte Sinai estava em direto contraste com a promessa: ali a bênção dependia da obediência do homem, e ele fracassou totalmente em guardar o concerto. O homem podia fracassar sob o concerto, e assim perder o direito de qualquer reivindicação com base nas obras; e certamente ele fracassou.

Mas Deus não poderia fracassar, portanto a promessa continuou sendo fiel para todo aquele que crê. “Portanto é pela fé, para que seja segundo a graça, a fim de que a promessa seja firme a toda a posteridade…” (Rm 4.16)

Assim Abraão creu na promessa de Deus, porque Deus não poderia falhar. “E não duvidou da promessa de Deus por incredulidade, mas foi fortificado na fé, dando glória a Deus; e estando certíssimo de que o que Ele tinha prometido também era poderoso para o fazer. Pelo que isso lhe foi também imputado como justiça.” (Rm 4.20-22) Ele não atentou para o seu próprio corpo. Agora, uma confiança como essa em um concerto de obras teria sido confiança em si mesmo, o que não teria sido fé, mas presunção. Sua fé tem a ilimitada confiança em Deus somente: na promessa de Deus. Portanto a fé foi imputada como justiça. Ele, o próprio Abraão, foi justificado pela fé, considerado justo diante de Deus. Isso foi escrito depois de Abraão, ou seja, para nós. Pois, por mais bendito que tenha sido para Abraão crer na promessa de Deus, há algo ainda mais bendito, para nós, “a quem será tomado em conta; os que cremos naquele que dos mortos ressuscitou a Jesus nosso Senhor; o qual por nossos pecados foi entregue, e ressuscitou para nossa justificação”. (Rm 4.24,25) Abraão creu na promessa de Deus. Nós cremos nestes dois fatos de Deus: na promessa, e que ela se cumpriu. Somos assim considerados justos diante de Deus.

Mas talvez alguém possa perguntar: Não há ainda muitos que confiam a salvação de suas almas às promessas? Eu pergunto: O que você acharia de uma mulher que descansasse na antiga promessa de seu marido como uma evidência de ser ela hoje sua esposa? Isto não mostraria que ela estaria ainda em dúvida se o matrimônio houvera sido realizado ou se seria válido; ou, pelo menos, que ela não estaria compreendendo o matrimônio? E não acontece algo semelhante quando tentamos descansar nas promessas? Haverá necessariamente alguma dúvida ou falta de entendimento acerca desses dois fatos já consumados diante de nós. Certamente há muitas promessas preciosas sobre as quais fazemos bem em descansar. Mas, o assunto que estamos tratando já não é mais uma promessa! A justiça nos é imputada, crendo naquele que ressuscitou a Jesus nosso Senhor de entre os mortos. Ela nos é imputada: não é uma promessa. Não, se somos crentes, a justiça de Deus está sobre nós. Somos considerados justos. Isto porque a ressurreição de nosso Senhor não é agora um assunto de promessa. Deus já ressuscitou Jesus de entre os mortos. E se não o fez, então não há evangelho, e nós continuamos em nossos pecados. (Leia 1 Coríntios 15.14-17.)

Vamos agora prosseguir com muita atenção. Deixe-nos antes apenas assinalar que ocorre uma mudança na linguagem. Já não se trata da morte de Cristo vista sob o aspecto do propiciatório, como no capítulo 3.22-26. Ali, essa morte

glorificou primeiramente a Deus. Estando o sangue diante dEle, Sua justiça é mantida, estabelecida sobre o Seu trono, o propiciatório; e, por conseguinte, há misericórdia disponível para todos sem que isto venha a comprometer a justiça de Deus. Porém aqui, no capítulo 4.24,25, Cristo é o Substituto de Seu povo, cumprindo o papel do segundo bode da expiação. Os pecados de Israel eram transferidos para aquele bode — colocados sobre ele e levados embora. É o que temos aqui. “O qual por nossos pecados foi entregue.” (Rm 4.25)

Será que Ele foi entregue pelos pecados do mundo todo, como seu Substituto, para levá-los embora? Se assim fosse, os pecados todos teriam sido levados embora, uma vez que Deus aceitou o Substituto, o que é verdade por Deus O ter ressuscitado de entre os mortos. Todavia, isto seria ensinar o erro fatal da redenção universal. É por isso que devemos cuidadosamente notar que estas palavras estão distintamente limitadas aos crentes. “Os que cremos.” (Rm 4.24) Abraão creu em Deus, e isto foi imputado a ele como justiça. Cremos em Deus, que Ele “dos mortos ressuscitou a Jesus nosso Senhor; o qual por nossos pecados foi entregue, e ressuscitou para nossa justificação”. (Rm 4.24,25) O capítulo seguinte também irá mostrar que isto deve estar limitado aos crentes. “Sendo pois justificados pela fé, temos paz com Deus, por nosso Senhor Jesus Cristo.” (Rm 5.1) Tentar aplicar estas palavras a todas as pessoas é procurar destruir o seu efeito sobre todas elas, sendo o mesmo que ensinar falsamente que todos serão salvos.

Vamos então juntar os fatos por sua ordem. Deus nos está falando aqui. Cremos nEle, que Ele ressuscitou Jesus de entre os mortos? Só isto não seria suficiente, pois os demônios sabem que assim é, e há muitos inconversos que não duvidariam desse fato. Mas repare bem no que vem a seguir: “O qual por nossos pecados foi entregue”. (Rm 4.25) Se fosse dito “nossas transgressões”, então não incluiria os gentios, os quais não se encontravam sob a lei, porém esta é uma palavra que abrange todos os nossos pecados — daqueles sob a lei, como sendo transgressões, ou daqueles sem lei.

Então, será que você crê realmente que Jesus foi entregue nas mãos cruéis de homens, sim, pregado numa cruz, e esteve ali para receber, e recebeu, a ira de Deus devida aos seus pecados, aos pecados pertencentes a você mesmo, leitor? Antes de ler outra linha, suplicamos a você que responda a esta pergunta diante de Deus. Será que você pode olhar para trás e ver o Santo de Deus carregando os seus pecados, leitor, tão verdadeiramente como se não houvesse nenhuma outra pessoa além de você, cujos pecados Ele levou sobre a cruz? Oh, que cena você pode contemplar: o seu Substituto!

E, se podemos nos expressar assim, Sua morte não só executou o infinito pagamento que a infinita justiça exigia, mas Ele “ressuscitou para nossa justificação”. (Rm 4.25) Deus demonstrou, assim, a sua aceitação pelo resgate — a morte de nosso Substituto; mas Ele não poderia, de maneira nenhuma, ter demonstrado de forma mais clara o eterno alívio de nosso fardo, do que ressuscitando o Substituto para nossa justificação. Oh, quão tremendo é! Ele foi ressuscitado de entre os mortos para que, crendo em Deus, pudéssemos justamente ser considerados, reputados, por justos diante dEle; tendo sido nossos pecados verdadeiramente levados, para nunca mais serem imputados a nós, como se nunca tivéssemos pecado — justificados, considerados justos diante de Deus, e por Deus, nosso Pai.

emos, assim, mais do que uma promessa — tudo é um fato consumado. Todos os nossos pecados — pois eram todos igualmente futuros então — foram levados por Jesus. “O qual por nossos pecados foi entregue.” (Rm 4.25) Deus O ressuscitou para nossa justificação. Crendo em Deus, somos justificados, considerados justos.

Note bem: “Ressuscitou para nossa justificação” não poderia nunca significar que ressuscitou porque fomos justificados; um tal pensamento põe a fé totalmente de lado. Trata-se, evidentemente, de ter ressuscitado “para”, com o objetivo de, com o propósito de nossa justificação; isto é, quando, por graça, cremos. “Sendo pois justificados pela fé” — sendo considerados justos sobre o princípio da fé — “temos paz com Deus, por nosso Senhor Jesus Cristo.” (Rm 5.1)

Muitas almas estão angustiadas com a dúvida acerca de estarem tendo o tipo certo de fé — “justificados pela fé”. Se separarmos este versículo do final do capítulo anterior, acabaremos ocupados com a fé como sendo um assunto abstrato; e acabaremos fazendo da fé algo que, de um modo ou de outro, mereça a justificação, passando, então, a ser uma questão de ficarmos examinando nossos próprios sentimentos. Alguém poderá dizer: Mas não houve “muitos” que, “vendo os sinais que fazia, creram no Seu nome. Mas o mesmo Jesus não confiava neles, porque a todos conhecia”? (Jo 2.23) É verdade; mas em que foi que eles creram? Sem dúvida creram nele como o Messias, quando viram os milagres que fez. Mas tratava-se de algo bem diferente daquilo que temos diante de nós aqui.

Bem, poderá você dizer, estou certo de que almejo ter paz com Deus, mas não tenho certeza de tê-la conseguido. Como pode ser isso? Você me diz que, em parte, é porque eu fico perguntando a mim mesmo se tenho o tipo certo de fé, mas o que acontece na realidade é que meus horríveis pecados e iniquidades erguem-se diante de mim e me oprimem, até que quase chego a concluir que não tenho parte alguma em Cristo. E minha consciência também confirma que assim é.

Acaso não foi Jesus, o Santo, o Santo de Deus, entregue por essas mesmas iniquidades? Você crê que Deus O ressuscitou de entre os mortos — Ele, “O qual por nossos pecados foi entregue”? Trata-se de algo bem diferente de milagres, não importa quão importantes eles sejam no seu devido lugar. Note bem que aqui trata-se de uma real substituição — Cristo, o Substituto do Seu povo e do crente, entregue. Não podemos confundir isto com a propiciação, a qual não foi apenas por nós, mas por todo o mundo. Deus está glorificado acerca do pecado, portanto o perdão gratuito é pregado a toda criatura — a todos os homens. Vamos usar de um tipo, ou figura, disto, a que esta própria passagem se refere. Depois que o sangue de um bode era espargido sobre o propiciatório de ouro diante de Deus, demonstrando a justiça de Deus atendida pelo sangue de Jesus sob as vistas de Deus — “então fará chegar o bode vivo. E Aarão porá ambas as suas mãos sobre a cabeça do bode vivo, e sobre ele confessará todas as iniquidades dos filhos de Israel, e todas as suas transgressões, segundo todos os seus pecados: e os porá sobre a cabeça do bode, e enviá-lo-á ao deserto, pela mão dum homem designado para isso. Assim aquele bode levará sobre si todas as iniquidades deles à terra solitária; e enviará o bode ao deserto”. (Lv 16.21) Compare agora isto com outra passagem: “Mas Ele foi ferido pelas nossas transgressões, e moído pelas nossas iniquidades: o castigo que nos traz a paz estava sobre Ele, e pelas Suas pisaduras fomos sarados. Todos nós andamos desgarrados como ovelhas; cada um se desviava pelo seu caminho: mas o Senhor fez cair sobre Ele a iniquidade de nós todos… Ele levou sobre Si o pecado de muitos”. (Is 53.5-12) As Escrituras não ensinam que Ele tenha levado os pecados de todos; mas, como Substituto, levou os pecados de muitos; e isto em contraste com a perdição daqueles que O rejeitam, e devem, portanto, ser julgados. Sim, note bem o contraste. “E como aos homens está ordenado morrerem uma vez, vindo depois disso o juízo, assim também Cristo, oferecendo-Se uma vez, para tirar os pecados de muitos, aparecerá segunda vez, sem pecado, aos que O esperam para a salvação.” (Hb 9.27,28)

Portanto, fé não é crer no que sinto, ou no que creio. Você crê neste maravilhoso fato, que Deus O ressuscitou de entre os mortos; a Ele que foi, como seu Substituto, entregue por nossas ofensas? Esta é a primeira questão que diz respeito todas as suas iniquidades. Foram elas transferidas para Cristo; foram elas colocadas sobre Ele? Não apenas os pecados de um ano, como acontecia com Israel no dia da expiação, mas todos os seus pecados e iniquidades tendo sido colocados ali, antes mesmo que você tivesse nascido. Assumiu Ele a total responsabilidade por esses pecados, em conformidade com os justos requisitos de Deus? Terá Ele vindo, e sido entregue, exatamente para esse propósito? Terá sido por estar suportando a ira de Deus contra os pecados que pertenciam a você, que Ele clamou: “Deus meu, Deus meu, por que Me desamparaste”? (Mt 27.46) Oh, um amor tal que vai muito além das palavras ou do pensamento! Terá Ele fracassado? Não, absolutamente; escute Suas palavras: “Está consumado”. (Jo 19.30) Sim, aquela obra que Ele veio cumprir está consumada. Deus está glorificado. Nossas iniquidades foram colocadas sobre Ele, transferidas para Ele, levadas por Ele; não apenas alguns de nossos pecados, mas todas as nossas iniquidades foram postas sobre Ele. O Senhor Jeová as colocou sobre Ele. E está consumado. Oh, minha alma, pondere bem nisto — “Está consumado!” Ele já fez a sua paz com Deus por Seu próprio sangue. E agora o que é que Ele diz a você? “Paz seja convosco.” (Jo 20.19) Será que você diz: Oh, mas e os meus horríveis pecados? Ele responde que foram todos colocados sobre Ele; “paz seja convosco”. Ele mostra Suas mãos e Seu lado. Mas, diz você, eu Te tenho negado, Senhor, nas horas em que mais deveria ter confessado a Ti. “Paz seja convosco.”

Será que agora que Deus já julgou em Seu Filho todos os nossos pecados, todas as nossas iniquidades, poderá, em justiça, julgá-las em nós novamente? Talvez você diga: Em momento algum duvido que Jesus morreu na cruz como meu Substituto, e levou meus pecados sobre Seu próprio corpo no madeiro; todavia, ainda assim não tenho a bendita certeza de estar justificado, e de ter paz com Deus; não sinto a alegria que deveria sentir. Será que esta passagem, ou qualquer outra, diz que estamos justificados e que temos paz pelo que sentimos? Será que diz que devemos olhar para nossos sentimentos em busca

de evidência de que estamos justificados? Deus fez algo para dar à fé a certeza de nossa justificação, e esse algo que Ele fez exatamente para esta finalidade, tem sido grandemente ignorado. Jesus não somente foi entregue por nossas ofensas, mas lemos que “ressuscitou para nossa justificação”. (Rm 4.25) Sim, Deus O ressuscitou de entre os mortos, não porque estávamos justificados, mas para o expresso propósito de, uma vez crendo nEle, pudéssemos ser justificados. Assim, se Cristo não ressuscitou, estamos enganados e continuamos em nossos pecados. (1 Coríntios 15.17.) Mas Ele ressuscitou; para a fé a questão toda está resolvida.

Acaso você diz: Mas será que não devo aceitar a expiação de meu Substituto?

Não, neste caso foi Deus Quem mostrou que já aceitou o único sacrifício por nossos pecados, ressuscitando Jesus de entre os mortos, e dando a Ele um lugar acima de todos os céus. E agora, no que diz respeito aos nossos pecados, querido leitor, onde é que eles estão? Foram transferidos para nosso Substituto. Bem, eles não poderiam estar sobre você e sobre Ele ao mesmo tempo. Não. Onde estão eles, então? Estarão eles sobre Cristo? Não. Mas devem estar sobre Ele, se é que devem estar sobre alguém, já que Ele tomou toda a responsabilidade deles diante de Seu Deus. Mas não estão sobre Ele. E portanto não podem tampouco estar sobre você. Oh, que tremenda graça! Deus diz que nunca mais se lembrará deles. E se lembrasse, teria que fazê-lo como estando sobre Cristo, o que é impossível. Cristo está claramente na presença de Deus na luz. Você, portanto, está justificado de todas as coisas — e não espera estar. Será que poderia haver algo que desse mais certeza do que descansar nas próprias palavras de Deus? Acaso não entregou Ele o Seu Filho amado exatamente com este objetivo, de que pudéssemos ter irrestrita paz com Ele? E então por que deveríamos duvidar dEle?

CAPÍTULO 5 – A POSIÇÃO DO CRENTE EM CRISTO

LIGANDO, portanto, este versículo – na verdade, ligando os primeiros onze versículos — com o capítulo 4 que o precede, temos três coisas que nos são asseguradas. Primeiramente, sendo justificados, considerados justos diante de Deus, temos, com respeito a todos os nossos pecados, paz com Deus, enquanto reconhecemos plenamente Sua santidade e justiça; e isso, não por meio de qualquer coisa que tenhamos feito, mas por nosso Senhor Jesus Cristo; a paz que é resultante do bendito conhecimento, pela fé, de que todos os nossos pecados foram levados embora pelo sangue de Jesus, de modo que Deus não pode mais nos acusar de nenhuma culpa. Temos paz com Deus, por nosso Senhor Jesus Cristo. Quanto ao passado, tudo está limpo.

Então, em segundo lugar: “Pelo qual também temos entrada pela fé a esta graça, na qual estamos firmes”. (Rm 5.2) Entramos, pela fé, no pleno e desimpedido favor de Deus. Esta graça inclui o favor gratuito revelado na redenção que temos, sendo justificados gratuitamente. É este o nosso feliz lugar; é aí que estamos firmes. Que tremenda paz a que já temos! Desnecessário é dizer que isto não poderá ser desfrutado se estivermos andando descuidadamente, ou permitindo qualquer tipo de pecado em nossa vida.

E, em terceiro lugar, no que diz respeito ao futuro, “nos gloriamos na esperança da glória de Deus”. (Rm 5.2) Não esperamos ser justificados, ou ter paz — isto já temos — mas esperamos, com regozijo, pela glória de Deus. Porventura não é um gozo, para nossos corações, saber que logo iremos estar no cenário onde tudo é para a glória de Deus; onde tudo é adequado a Ele; tudo puro por dentro e por fora? Sim, pureza sem pecado, adequada a Ele, quando Ele, que nos redimiu, vier e nos levar para Si mesmo. Poderia qualquer outra coisa trazer semelhante gozo ao nosso coração, além desta, que é estarmos com Ele e sermos como Ele é?

“E não somente isto”, (Rm 5.3) não somente o fato de termos a paz com Deus; o presente acesso ao gratuito favor de Deus, e o ardente almejo por Sua glória, mas isto nos capacita ainda a também nos gloriarmos nas tribulações presentes. “Sabendo que a tribulação produz a paciência, e a paciência a experiência, e a experiência a esperança. E a esperança não traz confusão, porquanto o amor de Deus está derramado em nossos corações pelo Espírito Santo que nos foi dado.” Devemos frisar que costuma-se cometer um erro muito comum com respeito a estes versículos. É comum que sejam lidos como se significassem exatamente o oposto daquilo que estão dizendo, como se precisássemos passar por uma experiência assim para que o amor de Deus pudesse ser derramado em nossos corações; é como se, caso orássemos bastante e fôssemos bem diligentes na paciência, experiência e esperança, pudéssemos esperar que o Espírito Santo nos fosse dado. Não há palavras para

expressar o quão errada é tal idéia. O Espírito Santo nos é dado porque Jesus terminou a obra da redenção; e, estando Ele agora glorificado, somos selados pelo Espírito, e o amor de Deus é derramado em nossos corações. Sendo assim, supor que o Espírito Santo venha a ser dado por causa de nossos esforços, nossa experiência ou devoção própria, é desprezar a perfeita obra de Cristo. No entanto, acontece justamente o contrário; toda essa bendita experiência vem por causa do amor de Deus ser derramado em nossos corações pelo Espírito Santo que nos foi dado.

Suponha que você fosse convidado para jantar com Sua Majestade, a Rainha, e que ela dispenssasse a você toda a atenção e gentileza possíveis; e que, ao invés de você desfrutar daquela gentileza, passasse a expressar, diante dos presentes, o desejo sincero de ter uma rainha, e uma rainha que lhe demonstrasse gentileza. O que ela, ou qualquer outra pessoa, pensaria de uma tal conduta? Só pessoas cegas e surdas poderiam cometer um engano assim. Não há dúvida de que aqueles que conhecessem melhor uma rainha assim, mais leais seriam; e aqueles que sabem que o amor de Deus é derramado em seus corações pelo Espírito Santo que lhes é dado, irão amar a Deus mais ainda, e terão essa bendita experiência por causa daquilo que já receberam dEle.

O que dizer do que é espiritualmente cego e surdo que nada pode perceber do amor de Deus para conosco, ou de como ele é derramado em nossos corações, mas que acaba transformando esta passagem em legalismo, pensando e dizendo que Deus nos amará enquanto nós O amarmos? Que quanto mais amarmos a Deus, mais Ele nos amará?! Tal pensamento encontra-se na raiz de uma grande parcela do vão esforço que é o de buscar santidade no homem. Muitos ficariam surpresos se vissem isto colocado de forma nua e crua. O que você diria de ter que se esforçar para tornar sua carne santa a fim de que Deus pudesse amar você? E não é isto o que milhares de pessoas estão tentando fazer? Será que isto não é repetir, na prática, o velho pensamento de que EU preciso ser santo a fim de que Deus me ame? Certamente que a carne deve ser subjugada, mas não para que Deus me ame, e sim porque Ele me ama. Vamos agora considerar como Ele nos tem amado, e em que estado nos encontrávamos quando Ele nos amou.

“Porque Cristo, estando nós ainda fracos, morreu a seu tempo pelos ímpios.” (Rm 5.6) Será que nossos corações já se renderam a este fato? Nós não éramos apenas culpados, mas não tínhamos forças, éramos incapazes de melhorar. Enquanto estávamos exatamente nessa condição, nos foi demonstrado o amor infinito: Cristo “morreu a seu tempo pelos ímpios”. Não existiam outros meios possíveis para Deus justificar o ímpio, senão pelo Seu Filho morrendo pelo ímpio. Sim, é exatamente nisto que o amor de Deus vem resplandecer em nosso favor. “Mas Deus prova o Seu amor para conosco, em que Cristo morreu por nós, sendo nós ainda pecadores.” (Rm 5.8) Será que isto aconteceu sobre o princípio de que quanto mais amamos a Deus, mais Ele nos amará? Poderá haver maior exibição do Seu amor do que esta: “Cristo morreu por nós”? Impossível! No entanto, isso aconteceu quando éramos ainda pecadores.

Oh, pare um pouco e medite no amor de Deus para conosco. Sim, não em um amor nosso para com Deus que pudesse existir primeiro. Não que tenhamos amado a Deus, mas que Ele assim nos amou. Quanto mais isto tomar posse de nossas almas, mais iremos amá-Lo.

Será que você está dizendo que tudo isso é verdade com respeito ao passado, mas que podemos fracassar no futuro, e então Deus deixaria de nos amar? Não, absolutamente; será que após havermos conhecido o amor de Deus, seríamos por fim abandonados à eterna ira? Vamos ouvir a resposta do Espírito Santo para esta questão tão solene. Se Deus dispensou de tal modo o Seu amor para conosco, a ponto de, quando ainda éramos pecadores, Cristo haver morrido por nós, “logo muito mais agora, sendo justificados pelo Seu sangue, seremos por Ele salvos da ira”. (Rm 5.9) Preste atenção: “sendo justificados pelo Seu sangue” é algo que nunca muda; não se trata de termos sido justificados uma vez pelo Seu sangue, e precisarmos ser justificados novamente, mas, “sendo justificados” é algo que sempre permanece. Seu sangue é sempre o mesmo diante de Deus, tendo feito expiação por todos os nossos pecados. Não há alteração. Portanto, não apenas somos, como “seremos por Ele salvos da ira”. Oh, infinita e preciosa graça!

E há ainda mais: “Porque se nós, sendo inimigos, fomos reconciliados com Deus pela morte de Seu Filho, muito mais estando já reconciliados, seremos salvos pela Sua vida”. (Rm 5.10) Oh, quanto cuidado tem nosso Pai em nos convencer de Seu eterno e imutável amor! Pense só nisto: toda a obra expiatória para nos reconciliar com Deus foi feita pela morte de Seu Filho. Deus foi glorificado; nossos pecados, todos os nossos pecados, foram transferidos para Cristo, e levados por Ele, quando éramos ainda inimigos! E agora somos justificados de todas as coisas, redimidos para Deus, feitos filhos Seus. Aquele que nos reconciliou por Sua morte vive para servir, para lavar nossos pés, para salvar-nos até o fim, por Seu sacerdócio e mediação, se porventura falharmos. “Muito mais, estando já reconciliados, seremos salvos pela Sua vida.” (Rm 5.10) Esta certeza quanto ao futuro remove agora qualquer impedimento para o pleno gozo do coração em Deus. Não apenas temos esta certeza de sermos salvos até o fim por Sua vida, “mas também nos gloriamos em Deus por nosso Senhor Jesus Cristo, pelo qual agora alcançamos a reconciliação”. (Rm 5.11)

Isto encerra toda a questão quanto aos nossos pecados. Deus é absolutamente justo no modo como tirou nossos pecados pela morte de Seu Filho. Eles foram colocados sobre o Substituto expiatório, em infinito amor para conosco, quando éramos ainda inimigos, sem força nenhuma. Aquele que um dia levou os pecados sobre Seu próprio corpo está ressuscitado de entre os mortos para nossa justificação. Estamos justificados, e temos paz com Deus. O amor de Deus é derramado em nossos corações pelo Espírito Santo que nos foi dado. O amor de Deus e a justiça de Deus estão plenamente reveladas e demonstradas em reconciliar-nos a Si mesmo pela morte de Seu Filho. Nossa libertação futura e salvação prática de toda ira é algo absolutamente certo. No que concerne ao pecado, recebemos em nossas almas o pleno efeito de tudo isso.

E, oh, maravilhoso privilégio! no que diz respeito a todos os nossos pecados, nos gloriamos sem detença em Deus! A salvação provém inteiramente de Deus, e nós O conhecemos ao ponto de nos gloriarmos em Deus, nos regozijarmos nEle em tudo o que Ele é.

Nem precisamos dizer que algo assim jamais poderia existir por intermédio da lei. Mesmo que a lei pudesse nos ter justificado dos pecados passados — o que era impossível — quem é que poderia permanecer sobre sua própria responsabilidade quanto ao futuro, e se gloriar em Deus, regozijar-se nEle? Ninguém; portanto tudo só pôde ser por meio de nosso Senhor Jesus Cristo, do princípio ao fim. Cuidemos para não deixar passar esta graça tão perfeita, ao permitirmos uma mínima confiança que seja na carne. É Cristo no futuro, assim como foi Cristo no passado.

Por conseguinte, o versículo 11 encerra a questão dos pecados. A questão do pecado nos será apresentada agora, se o Senhor assim desejar. Que o Espírito Santo possa aprofundar em nossas almas o senso da infinita graça de nosso Deus, a fim de podermos nos regozijar continuamente nEle.

Chegamos agora à questão do pecado, ou das duas cabeças das duas famílias: uma cabeça, Adão, pelo qual o pecado entrou no mundo; e a outra cabeça, Cristo, pelo qual a graça abundou sobre o pecado.

Muitas almas encontram-se profundamente angustiadas ao descobrirem que, apesar de crerem que seus pecados estão para sempre perdoados, ainda encontram sua raiz, o pecado, na carne. Boa parte dessa confusão acontece por não se observar cuidadosamente a diferença entre os pecados e o pecado, como aparece nesta epístola. Como já vimos, o versículo 11 encerra a questão dos pecados. O versículo 12 traz à tona a questão do pecado. “Pelo que, como por um homem entrou o pecado no mundo, e pelo pecado a morte, assim também a morte passou a todos os homens por isso que todos pecaram.” (Rm 5.12) Há, assim, duas provas da origem do mal: o pecado entrou no mundo por um homem; e, de toda a raça humana, todos pecam, e todos morrem. Quão absoluta a consistência que há na Palavra de Deus, e isto acompanhada de fatos! E é algo que tem sido constatado como verdadeiro, seja com o homem colocado tanto sob a lei, como sem lei.

Depois de haver entrado o pecado, e o homem ter caído, passaram-se ainda dois mil e quinhentos anos antes que fosse dada a lei. “Porque até à lei estava o pecado no mundo, mas o pecado não é imputado (ou, “colocado em conta”), não havendo lei. No entanto a morte reinou desde Adão até Moisés, até sobre aqueles que não pecaram à semelhança da transgressão de Adão, o qual é a figura dAquele que havia de vir.” (Rm 5.13,14) Isto é, eles não tinham transgredido uma determinada lei; todavia mesmo assim havia morte, a prova de que o pecado estava ali. Portanto, o pecado e a morte entraram no mundo por meio de sua cabeça, Adão. Assim, a morte não é meramente a penalidade por uma lei transgredida; mas, havendo o pecado uma vez entrado, a morte é o seu resultado; ou, como está expressado na Palavra, “o salário do pecado é a morte”. (Rm 6.23) Agora, em contraste com aquilo que entrou pelo pecado da criatura, a primeira cabeça — pecado e morte — aprouve a Deus nos revelar aquilo que entrou por meio de uma nova raça, por intermédio do dom, ou dádiva, de Seu próprio Filho — justiça e vida. Somente o infinito dom <B>deve<D> prevalecer sobre aquilo que é finito e medonho como foi o resultado do pecado da criatura. Deus não poderia, em Seu gratuito favor para conosco, conceder-nos uma dádiva, ou dom, que estivesse aquém de nossas necessidades. Daí vem o cuidado do Espírito Santo em nos mostrar como esse dom de gratuito favor abundou sobre o pecado, a raiz do mal e da morte que entrou por meio de Adão.

“Mas não é assim o dom gratuito como a ofensa. Porque, se pela ofensa de um morreram muitos, muito mais a graça de Deus e o dom pela graça, que é dum só Homem, Jesus Cristo, abundou sobre muitos.” (Rm 5.15) Sem dúvida, o efeito da ofensa do pecado de Adão sobre os “muitos”, mesmo sobre sua posteridade, é algo grande e terrível; e todos nós pertencemos a esses “muitos”. A morte passou a todos os homens. No entanto, se passamos da morte para a vida na ressurreta Cabeça da nova criação, devemos agora ver como a graça de Deus, e o dom, pela graça, por meio de Um — Jesus Cristo — abundou sobre os “muitos” que estão nEle.

“E não foi assim o dom como a ofensa, por um só que pecou. Porque o juízo veio de uma só ofensa, na verdade, para condenação, mas o dom gratuito veio de muitas ofensas para justificação.” (Rm 5.16) Em Adão vemos um pecado, e as consequências que brotaram dele em juízo. Olhe agora para o dom gratuito. Veja Jesus, nosso Substituto: todas as nossas iniquidades foram levadas a cair sobre Ele, e isto exatamente com o propósito de podermos, pela fé, ser justificados de todas elas. E, mais ainda, não apenas justificados de todas as nossas iniquidades pelo Seu sangue, mas Ele, havendo morrido por nossas ofensas, ressuscitou para nossa justificação.

Vamos meditar agora sobre este imenso fato — a ressurreição de Jesus de entre os mortos — e esta com o expresso propósito de nossa justificação — de nossa plena e abundante justificação. Quando Jesus foi ressuscitado de entre os mortos, incorporou a Si próprio aquela vida santa que Ele tinha e que Ele era. Ele podia assumi-la em perfeita justiça, havendo glorificado a Deus; e tendo redimido os “muitos”, em conformidade com aquela glória, Ele podia agora comunicar a eles — a nós — aquela mesma e eterna vida, uma vida justificada, em justiça, imutável e sempiterna. Será muito bendito se pudermos compreender esta justificação de vida, que reina e prevalece, embora admitindo plenamente que nossa vida, como filhos de Adão, foi colocada de lado.

“Porque, se pela ofensa de um só, a morte reinou por esse, muito mais os que recebem a abundância da graça, e do dom da justiça, reinarão em vida por um só — Jesus Cristo.” (Rm 5.17) Aqui fecha o parêntese do versículo 13. Será que algum de nós pode negar que a morte reina, por meio do pecado, sobre a raça de Adão? Qual médico é capaz de deter o reino da morte? No entanto, Jesus diz acerca dos “muitos” que são Seus: “E dou-lhes a vida eterna, e nunca hão de perecer, e ninguém as arrebatará da minha mão”. (Jo 10.28) A morte definitivamente não tem nenhum direito sobre aqueles que recebem a abundância da graça e do dom de justiça. Eles reinam em vida por meio de Um — Jesus Cristo. Nada pode deter a sua corrente; ninguém pode tirá-los da Sua mão.

“Pois assim como por uma só ofensa veio o juízo sobre todos os homens para condenação, assim também por um só ato de justiça veio a graça sobre todos os homens para justificação de vida.” (Rm 5.18) Isto é, o efeito dos dois atos para os dois “muitos” do versículo 19 — o pecado de Adão, e a obediência de Cristo até à morte — as duas famílias. “Porque, como pela desobediência de um só homem, muitos foram feitos pecadores, assim pela obediência de um muitos serão feitos justos.” (Rm 5.19) É, contudo, da maior importância vermos que esta justificação de vida está ligada à Sua ressurreição de entre os mortos, sendo um resultado dela. Não está escrito que Ele tenha guardado a lei para nossa justificação, mas que Deus O ressuscitou de entre os mortos exatamente com este propósito — para nossa justificação. Não é, e nem poderia ser, a justificação de nossa vida na carne sob a lei; isto não poderia ser de maneira nenhuma. A carne foi julgada e posta de lado. A vida que temos agora diante de Deus é a vida dAquele que passou pela morte por nós; e tudo aquilo que as justas exigências de Deus tinham contra nós foi plenamente satisfeito pela morte de nosso Substituto. Cristo é nossa vida. Poderá haver acusação contra Ele, que é justamente o nosso Substituto? Temos, então, por graça abundante, uma vida contra a qual não há, e nem pode haver, qualquer acusação — portanto, uma vida justificada.

Se estamos em Adão, ou na carne sob a lei, nada pode justificar a nós ou a essa vida pecaminosa. A ela aplica-se o juízo e a morte. Se estamos em Cristo, temos uma vida que prevalece, uma vida completamente justificada, que nada pode condenar. Quanto aos nossos pecados, somos considerados justos — a fé é imputada como justiça, e, sendo justificados, temos paz com Deus. Quanto àquilo que herdamos de Adão — nossa posição, vida e natureza pecaminosa — não estamos mais nisso, mas em Cristo ressuscitado de entre os mortos; e a vida eterna que temos nEle é uma vida justificada — e se é nEle, quão

completamente justificada ela é! É da máxima importância abraçarmos logo isto; completamente justificados de nossos pecados por Ele; e, como na nova criação, completamente justificados nEle que está ressuscitado de entre os mortos. Em ambos os casos tudo vem de Deus, em Jesus Cristo e por meio de Jesus Cristo.

Querido crente, você reconhece que não se encontra mais em Adão e nem ligado às coisas que pertencem a ele? O ponto de grande importância que você deve enxergar é este: “Assim que, se alguém está em Cristo, nova criatura é: as coisas velhas já passaram; eis que tudo se fez novo”. (2 Co 5.17) Que triste erro você estaria cometendo se voltasse, ou se apegasse às coisas velhas — à lei e à velha natureza — e viesse a supor que pudesse existir algo capaz de melhorar a velha natureza, ou de justificá-lo estando sob a lei, coisas essas já passadas! Entenda que sua justiça e sua vida são agora completamente novas, e que tudo provém de Deus. E o que provém de Deus deve necessariamente ser perfeito. Assim, estamos perfeita e eternamente justificados no Cristo ressuscitado.

Oh, que favor gratuito e maravilhoso este de Deus! Talvez você pergunte: Então por que a lei foi dada, se o homem não pode ser justificado por ela, ou se ela não pode conceder uma vida justificada? “Veio, porém, a lei para que a ofensa abundasse.” (Rm 5.20) Pode ter sido isto o que aconteceu com você em sua experiência passada. A lei pode ter atuado em você com poder destruidor, e quanto mais você se esforçou em guardá-la, mais a ofensa abundou. Quanto você deve ter se esforçado para tornar sua carne santa! E quanto mais se esforçou, mais fracassou. “Mas, onde o pecado abundou, superabundou a graça.” (Rm 5.20) Você crê em Deus acerca disto? Você pode agora mesmo parar com suas obras e descansar no irrestrito e gratuito favor de Deus? “Para que, assim como o pecado reinou na morte, também a graça reinasse” — sim, e esta “pela justiça para a vida eterna, por Jesus Cristo nosso Senhor.” (Rm 5.21) Não foi somente a graça que reinou — isto teria sido indiferença para com o pecado; tampouco foi só a justiça que reinou, pois então o pecador deveria ter sido condenado; mas a graça pela justiça. Sim, ela reina, e reina absoluta para vida eterna.

Porém, se somos constituídos justos por Cristo e em Cristo, totalmente aparte de quaisquer obras que pratiquemos, tendo os pecados perdoados, e o pecado não imputado a nós — surge então uma questão quanto à justiça prática — devemos nós continuar na prática do pecado? Os inimigos da graça de Deus sempre levantam esta questão, ou a colocam como uma acusação de que aqueles que aceitam as doutrinas da graça soberana de Deus, insinuam poder viver no pecado para que a graça abunde. Esta é uma acusação tão comum em nossos dias como era a que, naqueles dias, os fariseus lançavam contra o apóstolo. No próximo capítulo temos a resposta inspirada a essa calúnia tão usual. Mas descanse assegurado de que nada menos do que a abundante graça pode dar descanso à alma.

CAPÍTULO 6 – VIDA DE SANTIDADE

ESTA É, portanto, a questão: se a graça abundou sobre os pecados e sobre o pecado — sobre todas as iniquidades que cometemos, e sobre o pecado que herdamos, e onde o pecado abundou, a graça superabundou — seria, então, verdade que a graça abundante poderia nos levar a continuar na prática do pecado? Desde os dias de Paulo até hoje os que rejeitam o evangelho têm sempre falado ser assim. Se você está completamente justificado, não por suas próprias obras, mas pela sempiterna e imutável justiça de Deus em Jesus Cristo nosso Senhor ressuscitado de entre os mortos, e não só por meio dessa justiça, mas também nessa justiça — então isto implica que você admite que pode ser descuidado até ao ponto de praticar pecado!

Vamos ver o que o Espírito Santo, por meio do apóstolo, diz acerca disso: “Que diremos pois? Permaneceremos no pecado, para que a graça abunde?” Longe de nós tal pensamento; “De modo nenhum. Nós, que estamos mortos para o pecado, como viveremos ainda nele?” (Rm 6.1,2) Portanto, aqui está este

princípio — o princípio da libertação do pecado através da morte — que é tão ridicularizado. Jamais encontraremos outra libertação do pecado na Palavra de Deus. Durante séculos, muitas almas sinceras buscaram libertação por meio de jejuns e reclusão em mosteiros. Muitas almas sinceras a buscam agora por meio de esforços em busca de uma falsa perfeição da carne. Mas aqui está a plena verdade de Deus — libertação do pecado através da morte.

Note bem isto: não se trata da morte futura de nossos corpos, se viermos a morrer, mas trata-se, isto sim, de “Nós, que estamos mortos para o pecado, como viveremos ainda nele?” (Rm 6.2) O que é que isto significa, “nós, que estamos mortos para o pecado”? Será que você responderá que são aqueles que atingiram a perfeição? Acaso existe aqui algum pensamento desse tipo? De maneira nenhuma. Para mostrar com que segurança isto se aplica a todos os cristãos, o apóstolo diz: “Ou não sabeis que todos quantos fomos batizados em Jesus Cristo fomos batizados na Sua morte? De sorte que fomos sepultados com Ele pelo batismo na morte; para que, como Cristo ressuscitou dos mortos, pela glória do Pai, assim andemos nós também em novidade de vida”. (Rm 6.3,4) Ele é cuidadoso em demonstrar que este princípio de libertação do pecado por meio da morte se aplica a todos os que foram verdadeiramente batizados na morte de Cristo. Nada poderia ser mais claro, e, no entanto, nada é menos conhecido. No entanto é algo que deveria ser bem entendido, pois o apóstolo diz: “Não sabeis?”

Você entende, leitor, esta grande verdade prática da libertação do pecado? Será que você diz, como se expressou um conhecido professor há alguns dias, que “somos todos pecadores e inadequados para o céu; devemos, portanto, procurar de todos os modos melhorar nossa natureza pecaminosa; mas temo que, neste mundo, ela nunca estará preparada para o céu”? Preparada para o céu! Poderia um cadáver estar preparado para o céu? Ele está morto, e é por demais repugnante, tanto para o céu quanto para a terra. Deve ser sepultado. E será que você o sepulta para torná-lo, de uma só vez ou aos poucos, algo perfeito? Não passa de uma massa de corrupção; não há vida nele, nem sequer uma partícula, e nem pode haver até que seja revelado o poder de Deus em ressurreição.

E acaso não é isto o que acontece com todo o nosso ser moral? Nosso vizinho, por mais sincero que seja, está gastando sua vida buscando se aperfeiçoar — aperfeiçoar sua carne, por meio de sacramentos e rituais, mas teme que nunca será capaz de fazê-lo ao ponto de deixá-la preparada para o céu. Que cegueira é esta para alguém que poderia aprender até mesmo de seu próprio batismo. O que acontece de fato é que não cremos em Deus; não cremos que, em nossa carne como filhos de Adão, sejamos tão maus, tão vis, tão repugnantes, tão desagradáveis, tão mortos a tudo o que é bom, como o próprio Deus afirma que somos. Será que você já chegou a dizer: Só estou preparado para ser sepultado; ser colocado fora de cena. Sim, enterre-me, sepulte-me bem longe. Não estou preparado para céu e nem para a terra. Oh, sepulte-me longe, fora da vista de Deus e fora de minha própria vista? Eis aqui água, disse o eunuco, o que impede? Marque bem, então, que a libertação do pecado não é a melhoria do próprio eu, ou da natureza má — a carne, mas “fomos sepultados com Ele pelo batismo da morte“. (Rm 6.4) Não somos batizados para a obra do Espírito em nós, mas para a morte do Senhor, que morreu por nós e ressuscitou. A morte, então, que livra do pecado não é uma morte para o pecado que nós consigamos operar em nós, mas a morte de Cristo na cruz, e nossa identificação com ela — “sepultados com Ele”. E se você prestar atenção, verá que não existe nenhum pensamento acerca de batismo comunicando vida. O batismo é na morte, ou para a morte, e a vida no Cristo ressuscitado está além dela. Pois Cristo não somente morreu, e ficou morto, mas Ele “ressuscitou dos mortos, pela glória do Pai”. (dRm 6.4) Quão gloriosa é a nova criação! Cristo, o princípio dessa nova criação, ressuscitado de entre os mortos pela glória do Pai. “Assim andemos nós também em novidade de vida”. (Rm 6.4) Não só as coisas velhas já passaram, e tudo se fez novo, como também estamos agora na nova criação pela glória do Pai. “Porque, se fomos plantados juntamente com Ele na semelhança da Sua morte, também o seremos na da Sua ressurreição.” (Rm 6.5) O aspecto da ressurreição que há neste assunto nos é apresentado de forma mais completa em Colossenses 2. Mas deixe-nos apenas notar aqui que o batismo na morte é o ponto principal que demonstra aquilo que todos os cristãos deveriam saber — a verdade da libertação por meio da morte.

“Sabendo isto, que o nosso homem velho foi com Ele crucificado, para que o corpo do pecado seja desfeito, para que não sirvamos mais ao pecado. Porque aquele que está morto está justificado do pecado.” (Rm 6.6) A questão agora é a seguinte: Será que é quando o crente atinge a, assim chamada, perfeição, para que a velha natureza deixe de existir, que

o velho homem está crucificado; ou será que o que realmente acontece é que tudo transforma-se em algo bom? O texto não traz nenhuma idéia de que isso seja um estado peculiar a alguns cristãos, em detrimento de outros. Trata-se da própria verdade de nossa posição cristã, conhecermos que nosso velho homem foi crucificado. Quando? Quando sentimos isso? Não é este o pensamento aqui, mas diz que “foi crucificado com Ele”. Isto, com certeza, ocorreu na cruz. Ele não somente levou os nossos pecados sobre a cruz, em infinito amor, mas também nosso velho homem foi ali completamente julgado.

Certamente isso é algo ótimo de experimentarmos, quando ficamos assim identificados com esse Jesus crucificado, do que o batismo é uma figura. Estamos nós assim identificados com a morte de Jesus? Não identificados com a melhoria ou restauração de nossa velha natureza, mas será que podemos olhar para trás, para a cruz, e dizer: Ali eu fui crucificado com Cristo? Tudo aquilo em que eu poderia confiar precisou ser crucificado. Com toda a certeza foi assim que aconteceu, para que o corpo de pecado pudesse se destruído, tornado incapaz; pois um homem morto é totalmente incapaz, caso contrário não estaria morto. Vimos como Deus justifica o Seu povo de seus pecados pelo sangue de Jesus. Agora vemos como Ele os justifica do pecado, a raiz, ou a natureza. “Porque aquele que está morto está justificado do pecado.” (Rm 6.7) Os pecados estão perdoados, e agora o pecado não pode ser imputado àquele que está morto; ele está justificado do pecado. Mas não existiria poder para uma vida santa no simples fato de se estar morto para o pecado. Vamos ver o que é o verdadeiro poder quando chegarmos a Romanos 8.2, mas agora devemos apenas notar cuidadosamente que estamos tão verdadeiramente identificados com Cristo ressuscitado, ou até mais, quanto com Ele na morte.

“Ora, se já morremos com Cristo, cremos que também com Ele viveremos.” (Rm 6.8) Uma coisa segue a outra. E assim é para sempre. “Sabendo que, havendo Cristo ressuscitado dos mortos, já não morre: a morte não mais terá domínio sobre Ele. Pois, quanto a ter morrido, de uma vez morreu para o pecado, mas, quanto a viver, vive para Deus.” (Rm 6.9,10) Cristo nada mais tem a ver com o pecado, e nem o pecado com Ele; Ele esteve aqui uma vez e levou toda a maldição do pecado; Ele foi feito pecado, ou oferta pelo pecado. Que pecado? O dEle? Ele não tinha nenhum. O pecado, o nosso pecado, nada mais tem a ver com Ele, nem Ele com o pecado. Foi tudo tirado da vista de Deus. Aquele que um dia ficou sob o peso do pecado, que foi até à morte, vive agora para Deus. Oh, que verdade preciosa; como sustenta a alma! E o pecado nada mais tem a ver com Ele, e nem conosco. De uma vez por todas estamos identificados com Ele na morte — sim, mais do que identificados, vivos nEle para todo o sempre. Oh, minha alma, acaso você não crê em Deus? “Assim também vós considerai-vos como mortos para o pecado, mas vivos para Deus em Cristo Jesus nosso Senhor.” (Rm 6.11) Será que isto quer dizer que a velha natureza, ou o pecado, está erradicada, morta? Será que ela não existe mais no crente? Não há um tal pensamento aqui. Se assim fosse, se estivesse realmente morta, não precisaríamos considerá-la morta. Você já ouviu falar de algum cadáver sendo considerado morto? Estamos tão identificados com Cristo que Deus deseja que nos consideremos mortos com Ele, e vivos nEle. Ele deseja que tratemos a velha natureza como se estivéssemos mortos para o pecado, e vivos no Cristo ressuscitado de entre os mortos; só que, como já vimos, este último vem sempre antes do primeiro. Pois se alguém está em Cristo, nova criatura é, em Cristo Jesus nosso Senhor. Temos paz com Deus, no que diz respeito aos nossos pecados, por meio da obra de nosso Senhor Jesus Cristo. Mas Deus, que ressuscitou nosso Senhor Jesus Cristo, também nos ressuscitou nEle, de modo que estamos vivos para Deus em Jesus Cristo nosso Senhor.

Porém não há nada que mais se adeque aos propósitos de Satanás do que deixarmos isso tudo de lado; tanto a obra completa de Cristo, pela qual somos justificados de nossos pecados — nossa identificação com Sua morte para o pecado, e também a obra de Deus, em nos ressuscitar em Cristo, e assim nos libertar do pecado, vivos para Deus. Sim, apesar da clara verdade ensinada por este versículo, a libertação do pecado tem sido compreendida como um alvo futuro do crente, atingido somente por alguns. É esta a raiz da perfeição de justiça-própria na carne.

É somente o que Deus diz nestes versículos que nos dá o único princípio de libertação do pecado. Todos os outros métodos não passam de engano. Porém você dirá: Descubro que minha velha natureza não está morta de fato. Exatamente; mas você deve considerar-se a si próprio morto para o pecado, e vivo para Deus em Jesus Cristo nosso Senhor. Descobriremos que muito do que vem a seguir é o desdobramento deste princípio tão importante. Ele irá afetar cada passo de nosso andar neste mundo. Como devemos andar para demonstrar nossa identificação com um Cristo crucificado? Sim, estamos crucificados com Ele. Talvez você conheça muitos que andam como se estivessem mortos para as coisas de Deus e de Seu Cristo, e totalmente vivos para o mundo que crucificou Jesus. Que Deus possa usar estas solenes verdades em poder santificador para nossas almas!

“Não reine portanto o pecado em vosso corpo mortal, para lhe obedecerdes em suas concupiscências.” (Rm 6.12) Longe de nós esteja pensar que devêssemos praticar o pecado a fim de que a graça pudesse abundar. Como já vimos, viver no pecado é exatamente o oposto de estar morto para o pecado; certamente, o significado de morto com Cristo, como professado no batismo, não é viver em pecado. E agora, vive também para Deus em Jesus Cristo nosso Senhor. “Não reine portanto o pecado em vosso corpo mortal.” Ele não diz que o pecado não mais existe. Ele não diz que você deve considerá-lo extirpado. Se um inimigo não mais existisse em um país, não haveria necessidade de dizer: Não deixe esse inimigo reinar.

E nem você poderia dizer que devemos obedecer “suas concupiscências”, se não existissem mais concupiscências pecaminosas para serem subjugadas e resistidas. Mas não devemos permitir que nossos membros sejam instrumentos de injustiça para o pecado, “mas apresentai-vos a Deus, como vivos dentre os mortos, e os vossos membros a Deus, como instrumentos de justiça”. (Rm 6.13) É exatamente isto, o próprio princípio de um andar santo, que é nossa morte com Cristo, e o estarmos vivos para Deus. Não é, em momento nenhum, para atingirmos esse estado, mas para nos considerarmos assim mortos, e outra vez vivos, para assim andarmos. Reconhece-se que evidentemente há o conflito, mas há também libertação.

“Porque o pecado não terá domínio sobre vós, pois não estais debaixo da lei, mas debaixo da graça.” (Rm 6.14) Tendo, assim, vida em Cristo, podemos agora encarar o pecado em nosso velho e pecaminoso “eu” como um inimigo, todavia um inimigo que não deveria ter domínio. Que libertação isto traz! Para aquele que conhece a total vileza da velha natureza, não há palavras que possam expressar completamente a grandeza da libertação do reino do pecado. Pode haver uma súbita tentação — sim, falhas até — mas o pecado não deverá ter domínio — não deverá reinar. Mas por que o pecado não deve reinar? “Pois não estais debaixo da lei, mas debaixo da graça.” (Rm 6.14) Toda a história da cristandade, e a história de cada crente individualmente, comprova a verdade desta afirmação, e também do seu oposto. Na mesma proporção que o gratuito favor de Deus, por meio de Cristo Jesus, é conhecido e desfrutado, está a libertação da escravidão do pecado, e podermos viver uma vida santa. A lei não pode dar poder àqueles que se encontram sob ela, mas pode apenas amaldiçoá-los.

No momento em que você torna o favor de Deus condicional, seja com respeito à lei de Moisés, ou aos preceitos do evangelho, você começa pelo lado errado, e cedo acabará encontrando nada mais além de miséria e dúvidas. Você dirá: Não guardo os mandamentos de Deus como deveria; ou, Não amo a Cristo como deveria; será que sou realmente um cristão? Ora, será que isso é lei ou graça? Está claro que é lei. E a Palavra diz que o pecado não terá domínio sobre você, pois você não está debaixo desse princípio, mas debaixo da graça. Certamente não poderá haver santidade de vida, a menos que o coração esteja perfeitamente livre, descansando no desimpedido, gratuito e incondicional favor de Deus. Porventura Ele não me levantou, um ímpio pecador que merecia o inferno? Não entregou, em puro e imerecido amor, Seu Filho para morrer por nossos pecados? Acaso não O ressuscitou de entre os mortos para nossa justificação? E não nos deu eterna redenção pelo Seu sangue? Será que não temos assim paz com Deus, em conformidade com tudo aquilo que Deus é? Não estamos identificados com Cristo em todos os méritos de Sua morte; e mais ainda, vivos nEle para Deus? E não foi isso tudo por graça, livre e absoluta graça, a graça dAquele que não muda? Sim, e agora estou vivo para Deus e posso me considerar, considerar meu velho homem, morto. E estou, assim, livre de mim mesmo, para viver para Deus. E, dispondo de toda a imutável graça para mim, não estou, portanto, no terreno da lei, ou das condições para vida, salvação ou libertação, mas estou absolutamente debaixo da livre e eterna graça. Oh, agora sou livre para servir o Senhor, em verdadeira separação do mal e em completa aversão ao mal. Oh, gloriosa verdade! O pecado não terá domínio. Não há dúvida, querido crente, de que muitos dirão a você que uma doutrina assim irá levá-lo a pecar do jeito que gosta sua velha natureza. “Pois quê? Pecaremos porque não estamos debaixo da lei, mas debaixo da graça? De modo nenhum”, ou, longe de nós tal pensamento. (Rm 6.15) Aqueles que falam assim nunca conheceram o que é a graça de Deus, ou o que é a verdadeira liberdade — não liberdade para pecar, mas liberdade do pecado. Note bem que estas palavras não são para aqueles que estão procurando experimentar, na prática, que estão mortos para o pecado, ou mortos com Cristo e vivos para Deus. No batismo, eles professaram que estão mortos e sepultados com Cristo, identificados com Ele na morte. Consideram-se a si mesmos mortos para o pecado, e estão assim justificados do pecado e vivos para Deus.

Oh, que verdade maravilhosa, e quase esquecida! Morte para o pecado — a única libertação do pecado. Mas que libertação poderia existir sem vida em Cristo para Deus? Como pode você andar em novidade de vida, se você não tem novidade de vida? Se sua velha natureza

estivesse colocada debaixo da lei, então, com certeza, o pecado teria o domínio. Mas porque Deus deu a você uma nova vida — que é um dom gratuito vindo dEle — e colocou você em Sua própria graça, imutável e desimpedida graça, “pecaremos porque não estamos debaixo da lei, mas debaixo da graça?” (Rm 6.15) Longe de nós tal pensamento.

Temos certeza de que todos aqueles que gostariam de colocar você debaixo da lei, nunca conheceram verdadeiramente o que é a graça de Deus. E não se esqueça de que tudo isso demonstra a ligação que há entre a graça e a santidade prática, ou a justiça no andar. Isto está bem claro no versículo seguinte.

“Não sabeis vós que a quem vos apresentardes por servos para lhe obedecer, sois servos daquele a quem obedeceis, ou do pecado para a morte, ou da obediência para a justiça?” (Rm 6.16) Outrora éramos escravos do pecado — “fracos”. O pecado, como um senhor de escravos, era um dono completo. Fomos redimidos gratuitamente dessa condição, e libertados desse antigo proprietário, pela morte de Jesus. Antes era pecado para a morte. A que senhor obedecemos, ao pecado para a morte, ou à obediência para a justiça? Será que é para obedecer ao antigo senhor dos escravos, o pecado, que estamos vivos para Deus? Será esse o objetivo da graça de Deus? De modo nenhum. Então, será que você pode aplicar o versículo 17 a si mesmo? Você pode, com gratidão, reconhecer a plena verdade de que “tendo sido servos do pecado, obedecestes de coração à forma de doutrina a que fostes entregues”? (Rm 6.17) Não se esquive deste ponto.

Um escravo é levado a fazer aquilo que seu proprietário lhe ordena. Ele não tem poder para resistir, ainda que possa odiar fazer aquilo, não pode recusar-se a fazê-lo. Você já chegou a conhecer essa terrível escravidão do pecado? Já teve o pecado como seu dono? Já fez coisas que odiava, por não ter poder suficiente para escapar desse cruel senhor? Graças a Deus, podemos reconhecer que assim foi; e, graças a Deus, foi ali que Ele nos encontrou. E o que é a “forma de doutrina” para a qual você foi libertado? Porventura não foi a morte com Jesus, como tipificada no batismo? E você, obedeceu-a? Trata-se da identificação com Cristo na morte, e nEle vivo de entre os mortos. A resposta, então, é: “Libertados do pecado, fostes feitos servos (ou escravos) da justiça” (Rm 6.18)

Sim, foi desse modo que você trocou de dono, através da morte, do pecado para a justiça; e isso tudo em perfeita graça. Enquanto debaixo do pecado, estava livre da justiça; agora, como servos da justiça, estamos livres da escravidão do pecado. Sim, o pecado e a justiça são vistos aqui como dois senhores. O cristão está perfeitamente livre do velho tirano. “Assim apresentai agora os vossos membros para servirem à justiça para santificação.” (Rm 6.19)

É bem verdade que o homem usou a própria lei, dada por Deus para provar sua culpa, como meio de estabelecer sua justiça-própria. E outros podem abusar da graça de Deus como licença para pecar. No entanto está mais do que claro que o objetivo do Espírito Santo ao revelar estas verdades de infinita graça é para que possamos, como vivos para Deus, apresentar nossos membros como servos da justiça para a santificação. “Porque, quando éreis servos do pecado, estáveis livres da justiça. E que fruto tínheis então das coisas de que agora vos envergonhais? porque o fim delas é a morte.” (Rm 6.20) Sim, era essa a nossa condição — servos do pecado. E, oh, quão profunda a vergonha que caiu sobre nós em todos os terríveis frutos daquela escravidão. Todavia, que imensa mudança!

“Mas agora, libertados do pecado, e feitos servos de Deus, tendes o vosso fruto para santificação, e por fim a vida eterna.” (Rm 6.22) Devemos notar com cuidado que não há aqui nenhum ensino de melhoria da natureza pecaminosa, ou de aperfeiçoamento daquela natureza. Não, pois morte não é aperfeiçoamento. Porém o maior de todos os erros acerca deste capítulo é supor que a liberdade do pecado seja algo a ser alcançado. É pela morte — a morte de Cristo — e não por nosso esforço. E nos considerarmos mortos com Ele não é esforço. Portanto, não é servindo a Deus que nos tornamos livres do pecado; se assim fosse, seria por mérito humano. Acaso não é justamente o oposto? Leia cuidadosamente estas palavras: “Mas agora, libertados do pecado, e feitos servos de Deus, tendes o vosso fruto para santificação, e por fim a vida eterna”. (Rm 6.22)

Assim, cada cristão é libertado do pecado, e “feitos servos da justiça”. (Rm 6.18) Não diz que primeiro nos tornamos servos da justiça para depois sermos libertos do pecado. Não pode existir fruto verdadeiro para a justiça até que sejamos libertados do pecado. Estas grandes verdades nos ocuparão, se o Senhor quiser, no capítulo 7. Estes são fatos verdadeiros e solenes!

“Porque o salário do pecado é a morte, mas o dom gratuito de Deus é a vida eterna, por (ou em) Cristo Jesus nosso Senhor.” (Rm 6.23) Que dom! Oh, quão poucos crêem nisso! Nada temos para merecer isto, caso contrário não poderia ser o dom de Deus.

CAPÍTULO 7 – DUAS NATUREZAS EM CONFLITO

TEMOS agora em detalhe aquilo de que fomos libertados no capítulo 6. E será impossível entender este capítulo se não tivermos em mente esta ordem. A verdade do capítulo 6 deve estar totalmente assimilada antes de tentarmos entender o capítulo 7. O apóstolo disse: “Porque o pecado não terá domínio sobre vós, pois não estais debaixo da lei, mas debaixo da graça.” (Rm 6.14) Esta é uma afirmação muito importante, e o apóstolo agora explica como é que nós (isto é, aqueles que estavam sob a lei) fomos libertados. Em seguida ele descreve a condição de uma alma vivificada debaixo da lei, antes de sua libertação. Isto ele explica de forma bem completa, e, por fim, trata, com gozo, o tema da libertação, levando-nos ao capítulo 8.

Portanto, em primeiro lugar, como foi que aqueles que estavam debaixo da lei foram libertados dela? “Não sabeis vós, irmãos (pois que falo aos que sabem a lei), que a lei tem domínio sobre o homem por todo o tempo que vive?” (Rm 7.1) Este fato demonstra a importância da verdade que já foi apresentada — a identificação com a morte de Cristo; considerando-nos mortos com Ele, e vivos para Deus. Pois se aqueles que viviam debaixo dela, continuassem a viver debaixo dela, seriam responsáveis por cumpri-la em cada jota e cada til (Mt 5.18), caso contrário ela os amaldiçoaria. Neste caso o cristianismo não seria de nenhuma ajuda. O homem poderia continuar sob a maldição. A lei tinha domínio sobre um homem enquanto ele vivesse. Sua responsabilidade para com a lei só terminava na morte. A lei acerca do matrimônio prova isso: somente a morte dissolve o vínculo de responsabilidade. Enquanto o marido viver, a esposa não pode se casar com outro; seria adultério. Isto era algo patente a todos os que conheciam a lei.

De modo semelhante o crente não pode, por assim dizer, ter dois maridos. Ele não pode estar vivo na carne, casado com a lei (debaixo da lei), e também estar casado com Cristo. Não há dúvida de que os homens dirão que deve ser assim, que você deve ter ambos, a lei e Cristo; mas não estamos explicando aqui o que dizem os homens, mas o que dizem as Escrituras. Deus nos diz que não podemos ter Cristo e a lei. E do mesmo modo como uma esposa só é liberada do antigo marido pela morte, assim também nós só podemos ser libertos do antigo marido, o princípio da lei, pela morte. Embora seja verdade que ainda não tenhamos morrido, ainda assim, veja a importância da verdade que aprendemos no capítulo 6, que diz para nos considerarmos mortos, identificados com Cristo na morte. Só que agora isto é visto em sua relação com a lei em primeiro lugar.

“Assim, meus irmãos, também vós estais mortos para a lei pelo corpo de Cristo, para que sejais doutro, daquele que ressuscitou de entre os mortos, a fim de que demos fruto para Deus.” (Rm 7.4) Portanto eles estavam mortos para a lei pelo corpo de Cristo como se tivessem morrido de verdade. Passaram de sob o seu domínio para um estado completamente novo. Não têm mais nada a declarar ao antigo marido; mas entram em um novo parentesco, unidos a um novo marido, a Um ressuscitado de entre os mortos, o próprio Cristo.

Mas será que os grandes mestres não irão dizer a você ser isto antinomianismo, estar morto para a lei, nada mais ter a ver com ela, ou ela com você? Dirão que isto poderia levá-lo a produzir fruto para o pecado. Seria terrível, diriam eles. Mas o que é que Deus diz a este respeito? Ele diz que tudo isso é “a fim de que demos fruto para Deus”. Isto está perfeitamente de acordo com o que foi apresentado antes. “Porque o pecado não terá domínio sobre vós, pois não estais debaixo da lei, mas debaixo da graça.” (Rm 6.14) Estar debaixo da lei é estar debaixo da sua maldição, pois todos provaram ser culpados (Romanos 3). Mas agora somos um com o Cristo ressuscitado, tendo todos os pecados perdoados, e o pecado julgado, a fim de podermos dar fruto para Deus.

“Porque quando estávamos na carne, as paixões dos pecados, que são pela lei, obravam em nossos membros para darem fruto para a morte.” (Rm 7.5) Este versículo determina o caráter do ensino que se segue. Você não pode dizer, “Quando estávamos na carne“, a menos que tenha sido libertado daquele estado. Você não poderia dizer, “Quando estávamos em Londres”, a menos que tenha saído de lá. É muito importante entender isto. Com frequência pergunta-se: Será que esta parte do capítulo 7 trata-se da experiência apropriada a um cristão? Certamente que não, pois se fosse, não estaria dizendo “quando estávamos na carne”. Pode ser, como logo veremos, a experiência pela qual a maioria, se não todos, os cristãos já passaram. Mas costuma-se dizer que esta é a experiência de um inconverso. Tampouco pode ser isto; pois os inconversos não têm prazer na lei de Deus no homem interior.

(Romanos 7.22.) Trata-se, evidentemente, da experiência de uma alma vivificada, nascida de Deus, uma nova criatura que se apraz na lei de Deus no homem interior; mas alguém que ainda continua debaixo da lei, e ainda não aprendeu o que é a libertação pela morte.

O correto seria dizermos que a experiência descrita do versículo 5 ao 24 é a miserável experiência de uma pessoa nascida de Deus, se colocada debaixo da lei. E quando nos lembramos de quantos cristãos estão exatamente nesta condição, não é de se estranhar que tantos sintam-se tão miseráveis. Portanto devemos entender que as palavras, “porque, quando estávamos na carne”, significam quando estávamos na carne sob o primeiro marido, a lei. A lei só pode se dirigir ao homem como estando vivo. Era assim que ela considerava o homem, ordenando e exigindo obediência, se fosse o caso de alguém, sob ela, vivo na carne. Uma vez morto, todos os mandamentos e requisições cessam. Você não pode dizer a um homem morto para amar a Deus ou ao seu próximo; mas enquanto estiver vivo em uma natureza que só pode pecar, o mandamento só produz transgressão. A lei devia requerer justiça; mas como o homem não era justo, porém culpado, ela tornou-se assim um ministro de justiça e morte.

Todavia a porção do cristão é esta: considerar-se morto com respeito à carne, mas vivo para Deus. Uma vida inteiramente nova proveniente de Deus. O assunto todo será bastante simplificado se mantivermos estas duas coisas distintas: a velha vida, ou velha natureza, chamada a carne — o terreno no qual o homem foi provado sob a lei; e a nova vida, ou nova natureza, a qual o crente possui, a própria vida eterna do Cristo ressuscitado. Vimos como fomos libertados da escravidão do pecado por estarmos mortos para um e vivos para o outro. Isto não quer dizer que o pecado está erradicado, mas que estamos mortos para ele.

O versículo 6 trata agora deste mesmo princípio de morte — e vida em ressurreição em Cristo — aplicado à questão da lei. Não é que a lei esteja morta, ou abolida em si mesma, mas nós estamos mortos para ela: “Mas agora estamos livres da lei, pois morremos para aquilo em que estávamos retidos; para que sirvamos em novidade de espírito, e não na velhice da letra.” (Rm 7.6)

A lei efetivamente produziu toda essa experiência verdadeiramente miserável, mas agora estamos livres da lei. Será que você pode verdadeiramente dizer o mesmo? É da maior importância ter esta questão resolvida antes de examinarmos essa miséria da qual fomos libertados. Pela morte e ressurreição de Cristo nós estamos, não apenas completamente justificados de nossos pecados, mas passamos de uma condição de pecado e morte, para uma condição inteiramente nova; sim, uma nova criação de vida e justiça. Do que éramos para o que Cristo é. Em Adão nós estávamos em pecado e morte; agora estamos unidos, somos um com Cristo em ressurreição; estamos onde Ele está e somos o que Ele é. “Qual Ele é, somos nós também neste mundo.” (1 Jo 4.17) Sua própria vida nos é comunicada. Isto é algo tão real para a fé agora, como será para a vista muito em breve. Uma nova criação em Cristo Jesus. Deve ser entendido que trata-se de uma plena e completa justificação dos pecados e do pecado, e da libertação de todas as exigências da lei. Perguntamos outra vez: Você já está liberto assim? É preciso que exista esta completa libertação para que se possa servir em novidade de vida. Você já passou assim da carne — o estado de Adão, para Cristo? Pode você dizer: “Sim, agora tudo é Cristo”? Você dirá que a carne ainda está ali, e que há pecado. É verdade. E que a lei ainda continua ali.

Certamente. E que você pecou. Sim, isto também é verdade. Mas para que foi que Cristo morreu? Acaso não foi tanto para os seus pecados como para o seu pecado? Encontra-se você pecando agora ou libertado do pecado? Todavia, veremos isso tudo revelado mais completamente no capítulo 8.

Tão somente insistimos neste ponto: somente uma alma libertada pode entender a horrível experiência descrita no que se segue. O inconverso ou o iludido fariseu nada sabem acerca desta amarga experiência. Trata-se exatamente da ocasião em que a nova e santa natureza foi implantada, e junto com ela o profundo anseio por uma verdadeira santificação; para então descobrir não ter poder na carne para fazer aquilo que desejaríamos. Sim, a lei do pecado e da morte é como um senhor de escravos, e não há poder para se fugir dele. E quanto mais tentarmos guardar a lei, dirigida aos homens como vivos na carne, mais profunda será a miséria de fazermos as mesmas coisas que a nova e santa natureza tanto odeia. Sim, algo que não traria nenhuma dificuldade para um inconverso, ou para um que não é nascido de Deus, enche a alma vivificada de intensa miséria.

Será que é esta a sua condição? Se estiver vivificado, e debaixo da lei, estamos certos de que é esta a sua condição, em algum grau de intensidade. Oh, o quanto da agitação e dos esforços de nossos dias está direcionado a encobrir essa sua miséria e fazer com que você se esqueça dela! Bem, não se desespere; cremos que cada um que é nascido de Deus passa por isso em maior ou menor intensidade; e é frequente que aqueles que passam por ela em sua maior profundidade são os que mais se decidem a glorificar a Deus. Tanto o que faz deste capítulo a experiência de um pecador inconverso, como o que a considera como a experiência apropriada a um cristão, estão igualmente compreendendo mal. “Que diremos pois ? É a lei pecado? De modo nenhum: mas eu não conheci o pecado senão pela lei; porque eu não conheceria a concupiscência, se a lei não dissesse: Não cobiçarás.” (Rm 7.7) Se fôssemos seguir nossa própria inclinação, mesmo quando há em nós a nova vida, e a nova e santa natureza implantada, acabaríamos naturalmente nos voltando para a lei, e nos colocaríamos sob ela. É isto o que sempre acontece quando o Espírito Santo não é reconhecido. E trata-se de algo notável, nestes versículos, que o Espírito Santo não seja nem uma vez citado. Como já dissemos, existem poucas pessoas que não estejam passando atualmente por esta experiência; e aquelas que já receberam libertação podem olhar para trás e ver o proveito que obtiveram desse exercício de coração.

A primeira coisa, portanto, que aprendemos é esta: que a lei não é pecado; é por ela que aprendemos o que o pecado é. A lei expôs a raiz. “Porque eu não conheceria a concupiscência, se a lei não dissesse: Não cobiçarás.” (Rm 7.7) Quando a nova natureza foi dada, a espiritualidade da lei foi sentida. Um homem sem a nova natureza diria que a concupiscência não é pecado, a menos que você venha a transgredir de fato, cometendo o pecado na prática. Mas quando a lei se aloja na consciência, ela detecta a concupiscência, e digo: “Ora, isto é pecado!” Sim, a própria concupiscência é pecado; isto é, a própria raiz é pecado.

“Mas o pecado, tomando ocasião pelo mandamento, obrou em mim toda a councupiscência: porquanto sem a lei estava morto o pecado.” (Rm 7.8) E essa raiz, sendo pecado, toma ocasião, pelo mandamento, para operar em mim todo tipo de desejo por aquilo que é proibido. “Porquanto sem a lei estava morto o pecado.” (Rm 7.8) Estava inativo. Proíba

uma criança de ir ao jardim e ela imediatamente desejará fazê-lo; e então, se a sua vontade atuar sobre ela, ela irá.

“E eu, nalgum tempo, vivia sem lei, mas, vindo o mandamento, reviveu o pecado, e eu morri.” (Rm 7.9) Uma pessoa, antes de ser vivificada, pensa que está viva e que pode viver e fazer o que deseja. Sim, ele dirá que estava vivo sem lei. Pergunte a um homem natural: Você está salvo?” Ele responderá: Não sei; espero que sim. Frequento um lugar de adoração e estou fazendo o melhor que posso, e espero acabar chegando no céu. Oh, sim, dirá ele, estou vivo. Não existe nem sequer a idéia, em seu pensamento, de estar perdido. Ele não diz uma palavra que expresse a mínima possibilidade de estar precisando de um Substituto na cruz. E se você perguntar até mesmo a cristãos professos, ficará surpreso ao receber as mesmas respostas.

Portanto, no momento em que alguém é nascido de Deus, tudo isso muda. Ora essa; como pode ser isto?, dirá ele, Tenho uma natureza que deseja exatamente aquilo que Deus proíbe! Ele volta-se, então, para a palavra da lei de Deus e vê morrer toda esperança de ser, na carne, aquilo que esperava poder conseguir. “E eu morri.” (Rm 7.9) Sim, estamos agora diante da difícil morte do velho “EU“. Ele anseia por santidade; ele volta-se para os mandamentos que são ordenados para vida: Quem os fizer viverá por eles (veja Ezequiel 20.11), mas vê que são para morte. Ele descobre que o pecado tem o controle da situação, e que usa o próprio mandamento para matá-lo. Não se esqueça de que isto se passa “quando estávamos na carne”. (Rm 7.5) Veja só como a última esperança de bondade na carne nos foi tirada!

“E assim a lei é santa, e o mandamento santo, justo e bom.” (Rm 7.12) A lei veio de Deus; não era má, e nem pecado; era “santa, e o mandamento santo, justo e bom”. (Rm 7.12) Não tornou-se em morte para mim; “mas o pecado, para que se mostrasse pecado”. (Rm 7.13) Oh, o que é descobrir que eu — minha própria natureza — como um filho de Adão, era só pecado, e que pelo mandamento minha natureza deveria tornar-se, e tornou-se, excessivamente pecaminosa!

E vamos mais além. “Porque bem sabemos que a lei é espiritual; mas eu sou carnal, vendido sob o pecado.” (Rm 7.14) Sim, a lei não podia exigir menos do que justiça, mas o que encontro em mim?

“Sou carnal, vendido sob o pecado.” (Rm 7.14) Você sabia disso? Será que já se reconheceu como um indefeso escravo do pecado? Isto é tudo o que o velho “EU”, a carne, é. Descobrir isto é detestar tudo o que faço; é descobrir que não tenho poder para fazer o que desejaria; é reconhecer que a lei é boa e que só exige de mim o que é bom.

“De maneira que agora já não sou eu que faço isto, mas o pecado que habita em mim.” (Rm 7.17) Isto é uma grande descoberta. Aprendo que há uma natureza, o pecado, que ainda se encontra em mim, apesar de eu poder olhar por cima dele como algo distinto de mim mesmo, de meu novo “EU“. “Bem”, digo eu, “O que é que há, então, nessa velha natureza, no velho EU?” Não há nem um pouquinho de bem em mim, isto é, em minha carne, ou minha velha natureza. “Porque eu sei que em mim, isto é, na minha carne, não habita bem algum: e com efeito o querer está em mim, mas não consigo realizar o bem.” (Rm 7.18) Trata-se de algo por demais humilhante descobrir que eu, como filho de Adão, não tenho nenhum poder para fazer o bem — sim, muito pelo contrário! “Porque não faço o bem que quero, mas o mal que não quero esse faço.” (Rm 7.19) É este o verdadeiro caráter da velha natureza, mesmo quando a nova natureza deseja fazer o bem e ser santa — sim, já que a nova natureza é santa, por ser nascida de Deus. De modo que não é a nova natureza, o novo “EU“, que pratica o mal, quando a velha natureza está fazendo exatamente aquilo que a nova natureza condena.

“Ora, se eu faço o que não quero, já o não faço eu” — não mais eu como uma nova criatura que sou, — “mas o pecado que habita em mim”. (Rm 7.20) Há, portanto, dois princípios, ou naturezas, no homem nascido de Deus. O princípio da velha e depravada natureza é chamado de uma lei.

“Acho então esta lei em mim: que, quando quero fazer o bem, o mal está comigo.” (Rm 8.21) É este o invariável princípio da velha natureza — “quando quero fazer o bem, o mal está comigo”. “Sim”, você dirá, “é exatamente isto que descobri, para minha profunda tristeza; ao ponto de isso ter me levado a concluir que, se sou assim, não posso ter nascido de Deus”. Aqueles que não são nascidos de Deus nunca descobriram ser nem metade ruim do que você descobre que é em seu velho “EU“. Mas, acaso as palavras que vêm a seguir não provam que você é nascido de Deus — isto é, que você possui um novo “EU“, ou uma nova natureza?

“Porque, segundo o homem interior, tenho prazer na lei de Deus.” (Rm 7.22) Certamente isto prova que, sem dúvida alguma, existem duas naturezas; pois como poderia a velha natureza, que é pecado, se deleitar na lei de Deus? Todavia, “segundo o homem interior, tenho prazer na lei de Deus“. (Rm 7.22) “Bem”, dirá você, “parece ser uma contradição”. É exatamente isto que as duas naturezas são uma para a outra; sim, estão em contradição direta àquele homem interior que tem prazer na lei de Deus. Veja o versículo 23: “Mas vejo nos meus membros outra lei que batalha contra a lei do meu entendimento, e me prende debaixo da lei do pecado que está nos meus membros.”

Portanto, negar a existência das duas naturezas em um homem nascido de novo é negar o ensino claro da Palavra de Deus. Porventura Jesus não falou que “o que é nascido da carne é carne, e o que é nascido do Espírito é espírito”? (Jo 3.6) Trata-se, portanto, de um completo novo nascimento; de uma nova natureza, uma nova criação, que é do Espírito e que é espiritual. Aquilo que é nascido de uma carne ou natureza pecaminosa é, ou seja, permanece sendo, carne e pecado. E aprendemos aqui que se estamos sob a lei, isto é, se estamos no terreno da carne, debaixo da lei com vistas ao aperfeiçoamento da carne, como milhares de pessoas estão, então descobrimos que, na guerra travada pelas duas naturezas, acabamos presos “debaixo da lei do pecado que está nos meus membros”. (Rm 7.23) Trata-se de uma realidade terrível, mas iremos acabar conhecendo a malignidade de nossa velha natureza na prática, se não crermos no que Deus diz acerca dela. Todavia, se for este o caso, ou seja, de um homem nascido de Deus, sob a lei, não conhecendo a distinção entre as duas naturezas, ele estará sentindo-se extremamente miserável, se for sincero e estiver buscando ardentemente por justiça e santidade de vida. É exatamente o que encontramos aqui.

“Miserável homem que eu sou!” (Rm 7.24) E agora já não é mais “Quem me ajudará a melhorar a carne?”, mas sim, “quem me livrará do corpo desta morte?” Sim, o “EU“, o velho homem, o corpo desta morte, deve ser abandonado. Precisamos ter um Libertador, e este Libertador é Cristo.

“Dou graças a Deus por Jesus Cristo nosso Senhor.” (Rm 7.25) Poucas palavras, mas oh!, que gloriosa vitória e livramento! Após chegar à plena descoberta de minha completa incapacidade, e da imutável malignidade da velha natureza, os olhos são agora

levantados para Cristo, e o coração dilata-se no pleno gozo da gratidão. Esta libertação será melhor explicada no próximo capítulo.

Há um erro que é cometido com frequência aqui, e devemos nos precaver cuidadosamente contra ele. É comum que se diga, ou que se insinue, que o que vimos acerca da velha natureza, a carne, a lei do pecado nos membros, é verdadeiro acerca do crente antes que ele consiga a libertação; mas que depois sua velha natureza muda ou é erradicada — ou que, em todos os seus aspectos, melhora muito; que é, de repente ou gradualmente, santificada etc. etc., e que não há mais uma natureza má nos santos que são libertos, ou santificados. Será que é assim, ou não? Deixemos que as próprias palavras que se seguem, as quais vêm depois de nossa libertação e ações de graças, respondam a esta importante questão.

“Assim que eu mesmo com o entendimento” (ou o novo homem) “sirvo à lei de Deus, mas com a carne” (ou a velha natureza), “à lei do pecado.” (Rm 7.25) Não nos encontramos mais no terreno da carne, como vivendo sob a lei e procurando aprimorar a carne — não nos encontramos mais na carne. Mas, o fato de que a carne permanece no santo libertado — na mesma pessoa que, com o novo entendimento, ou natureza, serve a lei de Deus, é algo declarado com a maior ênfase possível. Mas a carne, e a lei do pecado, ainda permanecem em mim. Podemos discordar, discutir, ridicularizar, mas aqui está a verdade da Escritura, e é algo que cada crente descobre ser verdade. Assim nos vemos na necessidade de sermos guardados irrepreensíveis, em nosso espírito, alma e corpo. (Leia 1 Tessalonicenses 5.23.) Coloque a velha natureza sob a lei, tente encontrar algo de bom nela e, imediatamente, você experimentará o que está descrito aqui. Uma só questão mais, antes de deixarmos este assunto. Como pode haver tantos cristãos passando por esta experiência? Simplesmente porque, apesar de nascidos de Deus, estão, por meio de ensinos falsos ou incorretos, colocados debaixo da lei, e nunca conheceram o verdadeiro caráter da libertação. Passemos, a seguir, a indagar que libertação é esta.

CAPÍTULO 8 – EXPERIÊNCIA VITORIOSA

PORTANTO agora nenhuma condenação há para os que estão em Cristo Jesus.” (Rm 8.1) Que declaração maravilhosa! Não se trata meramente do que será a justificação do crente quando for manifestado diante do trono de Cristo, mas “agora” não há nada para condenar naqueles que estão em Cristo Jesus. Se olho para o que sou na carne, só encontro o “miserável homem que sou!” Se olho para o que sou em Cristo Jesus, vejo que agora não há condenação. Estou morto para tudo aquilo que sou como um filho de Adão — morto para o pecado, morto para a lei, mas vivo para Deus em Cristo Jesus. Então, sendo agora de outro, e estando em outro, em Cristo Jesus ressuscitado de entre os mortos, não me encontro apenas na posição de um que produz fruto para Deus, mas de um para quem “agora nenhuma condenação há”. Você está assegurado disto? Será que pode existir alguma condenação para aquele Cristo ressuscitado que está agora na glória de Deus? Portanto, se você estiver nEle, como poderá haver condenação para você?

As palavras que vêm a seguir, “que não andam segundo a carne, mas segundo o espírito”, são omitidas nas melhores traduções; todavia nós as encontraremos, como um resultado, no versículo 4. Em alguma época posterior elas foram inseridas aqui como se fossem uma condição, uma prevenção. Mas vamos nos deter na importância deste versículo como o próprio fundamento da libertação. Nenhuma alma poderá conhecer a verdadeira libertação do poder do pecado se não conhecer primeiro o absoluto favor de Deus em Cristo. Quão maravilhoso é, após um capítulo de amargas experiências, após haver esgotado completamente toda esperança de encontrar algo de bom em si mesmo, na velha natureza, poder descobrir que, como mortos com Cristo, e vivos de entre os mortos em Cristo, encontramo-nos no absoluto favor de Deus, sem nenhuma condenação! Que perfeita paz! Nada para nos inquietar; nada para nos condenar. E é o próprio Deus Quem diz: “nenhuma

condenação”.

Querido jovem crente: Será este o sólido alicerce sobre o qual, e no qual, você permanece? Se assim for, podemos passar ao versículo 2.

“Porque a lei do Espírito de vida, em Cristo Jesus, me livrou da lei do pecado e da morte.” (Rm 8.2) Vimos a lei terrível, ou seja, o poder do pecado; acaso não o conhecemos e sentimos seu poder? Mas que nova lei — ou poder, ou princípio — é esta? Será o poder de minha nova natureza como nascido de Deus? Não; apesar de que, como nascido de Deus, tive prazer na lei de Deus, mas isso, como já vimos, não me livrou da lei do pecado. Mas agora sim, esta me livra: a lei do Espírito de vida em Cristo Jesus. Trata-se de Deus, o Espírito Santo, habitando em nós; já não se trata de morte, mas do Espírito de vida.

Então, como já vimos, possuímos uma vida justificada. Agora temos o poder — a lei do Espírito de vida. Em outro lugar aprendemos que a vida que agora temos é eterna, e o Espírito é eterno. Portanto o poder que tenho é eterno. Vimos que a carne, ou o pecado, continua em nós — aquilo que é nascido da carne; mas aqui encontramos a libertação do seu poder: libertos da lei do pecado e da morte; libertos pelo infinito, pelo eterno poder, a lei do Espírito de vida. Não diz que “me livrará”, mas que “me livrou”. Nossa velha natureza pecaminosa é tão depravada que, apesar de ser nascido de Deus, de ter prazer na lei de Deus e desejar guardá-la; ainda assim a lei que há em meus membros me colocou no cativeiro. E acaso não foi assim que aconteceu? Mas somos agora libertos de seu poder, por um poder maior — a lei do Espírito de vida em Cristo Jesus. Oh, quão bom seria se pudéssemos ter uma fé mais simples na Palavra de Deus; sim, e também no Espírito Santo que habita em nós! Este versículo resume todo o contexto do capítulo 6. Trata-se do princípio de nos reconhecermos mortos para o pecado e vivos para Deus em Jesus Cristo, princípio este aplicado pelo poder do Espírito.

Ainda assim, há muitos jovens leitores que podem se deparar com esta dificuldade, ao experimentarem a completa degradação da carne, conforme é descrita no capítulo 7. Talvez alguém diga: “Vejo como meus pecados foram perdoados; mas, descobrir, a partir de então, que a velha natureza que possuo é completamente má; descobrir que não há poder em se tentar guardar a lei de Deus, não importa o quanto eu gostaria de consegui-lo; descobrir, para minha surpresa, uma natureza má, uma lei de pecado, que me mantém cativo; que minha própria natureza — o pecado na carne — só praticou aquilo que eu odiava e condenava. Como, então, você pode me afirmar que não há condenação?” Vamos ler o versículo seguinte em busca de uma resposta.

“Porquanto o que era impossível à lei, visto como estava enferma pela carne, Deus, enviando o Seu Filho em semelhança da carne do pecado, pelo pecado condenou o pecado na carne; para que a justiça da lei se cumprisse em nós, que não andamos segundo a carne, mas segundo o Espírito.” (Rm 8.3,4) Aqui está o que a lei não podia fazer, e que Deus fez. A lei não podia libertar, nem da culpa, nem do poder do pecado. Ela era fraca tanto para libertar como para ajudar o homem na carne, pois a carne era pecado; e se atuasse sob a lei, só poderia transgredir, ainda que fosse em alguém vivificado e ansiando por libertação.

É bem aqui que surge a pergunta: Será a libertação uma questão de se apreender a verdade, ou meramente de se conhecer a verdade? A libertação do Egito responde à nossa dúvida. Assim como uma alma vivificada, eles creram na Palavra de Deus por intermédio de Moisés e Aarão (Êxodo 3.7-10; 4.31,32), e ansiavam por libertação (Êxodo 5.1-3), e, por assim dizer, passaram pela experiência de Romanos 7 fazendo tijolos nas olarias do Egito, tornando-se mais desventurados do que nunca, e nem um pouco libertados. Acaso foi o aumento de conhecimento, ou de apreensão, que os livrou? Porventura o conhecimento das promessas de Êxodo 6 os libertou? Será que um conhecimento mais profundo do favor providencial de Deus, do capítulo 7 ao 11, os libertou? Nem um pouco. Eles foram libertados verdadeiramente com base na redenção, mas isto foi pelo poder de Deus.

Já que não havia nenhum poder na santa lei de Deus para libertar, sua única prerrogativa era a de amaldiçoar o culpado. Em Romanos 8.2, portanto, encontro o poder que me libertou da lei do pecado e da morte. No versículo 3 vemos a incapacidade da lei em libertar por intermédio da fraqueza da carne, e a seguir, o modo como Deus libertou, e a base na qual a libertação foi operada. Esta parte resolve também a seguinte questão: Como é que não há condenação para mim, uma vez que a carne é tão completamente vil? “Deus, enviando o Seu Filho.” Exatamente quando tudo mais falhou em libertá-los do Egito, o cordeiro precisou ser levantado e morto; o israelita, embora ainda não libertado, estava totalmente protegido pelo sangue. Portanto, a base para a libertação aqui é: “Deus, enviando o Seu Filho em semelhança da carne do pecado, pelo ecado (ou, um sacrifício pelo pecado) condenou o pecado na carne.” (Rm 8.3) Não somente entregue por nossas iniquidades, e ressuscitado para nossa justificação, como já vimos; mas a morte expiatória do Filho de Deus enviado por causa do pecado — a própria raiz. É assim que agora, havendo tanto os pecados como o pecado sido ambos condenados, julgados, é que não há, positivamente, nada deixado para ser condenado. É, portanto, com base na obra expiatória do Filho que o Espírito de vida em Cristo Jesus concede completa libertação.

Assim como a libertação do Egito significava a saída de um lugar, ou de uma condição de escravidão para outra de liberdade, também o crente é, pelo Espírito de vida, levado para fora de um lugar, ou de uma condição, chamada “na carne”, para outro lugar, ou condição, chamado “em Cristo”, havendo o pecado sido perfeitamente julgado, por ter o Santo Filho de Deus sido feito pecado por nós. E isto não para que pudéssemos continuar em escravidão, mas para que fôssemos libertos, a fim de que as justas demandas da lei pudessem ser cumpridas em nós, que não andamos segundo a carne, mas segundo o Espírito.

Israel, que então encontrava-se em escravidão, é agora visto livre; liberto para servir Jeová. E assim também foi conosco; após termos sido vivificados, continuamos na escravidão da carne, ou sob a lei. Aprendemos agora acerca da total malignidade da carne, e de nossa

incapacidade, deixando assim de buscar o aperfeiçoamento da carne. Não estamos mais nela, mas em Cristo; libertados pelo Espírito. Devemos agora andar em conformidade com o Espírito, e o Espírito irá atuar em nós em poder, com base na obra de Cristo.

A carne é deixada de lado por aqueles que não andam “segundo a carne”. Uma outra posição é ocupada agora por aqueles que andam “segundo o Espírito”. Há, por assim dizer, duas classes. “Porque os que são segundo a carne inclinam-se para as coisas da carne; mas os que são segundo o espírito para as coisas do espírito.” (Rm 8.5) Uma é morte, a outra é vida. E mais ainda: “a inclinação da carne é inimizade contra Deus, pois não é sujeita à lei de Deus, nem, em verdade, o pode ser.” (Rm 8.7) Segue-se disso que aqueles que estão neste terreno, aqueles que estão na carne, não podem agradar a Deus.

Acaso você, jovem crente, já chegou a esta conclusão — que sua velha natureza, a carne, o pecado, é completamente incapaz de agradar a Deus? Trata-se de uma raiz que só produz o mal, não importa o quanto você tente melhorá-la. Ela é só inimizade contra Deus. Não dê ouvidos a esse abominável sentimento de que a cobiça não é pecado enquanto você não cometer aquilo que está cobiçando. O pecado é a própria raiz da cobiça, como vimos no capítulo 7, versículo 8. Não, aquela raiz precisou ser julgada, e o infinito sacrifício foi feito pelo pecado. “Àquele que não conheceu pecado, O fez pecado por nós; para que nEle fôssemos feitos justiça de Deus.” (2 Co 5.21) É só com base nisto que somos libertados da culpa e da condenação que é devida ao nosso pecado, a carne; e nesta base não nos encontramos mais na carne, mas no Espírito. E aqui surge uma questão de profundo interesse. Quando, e como, podemos concluir, ou saber, que não estamos na carne, mas no Espírito? Trata-se de uma questão muito importante, seja para crentes novos ou velhos. Vamos analisar isto com mais cuidado.

Não há dúvida alguma de que “Aquele que em vós começou a boa obra a aperfeiçoará até ao dia de Jesus Cristo”. (Fp 1.6) Todavia, há diferentes estágios da obra de Deus na alma, como vemos tipificado na redenção de Israel.

O versículo 9 responderá a esta importante questão: Quando podemos concluir que não estamos na carne, mas no Espírito? “Vós, porém, não estais na carne, mas no Espírito, se é que o Espírito de Deus habita em vós.” (Rm 8.9) Portanto, fica claro que se o Espírito de Deus habita em você, você poderá concluir com segurança que não está na carne. Haveria, então, um período distinto entre a vivificação, ou novo nascimento de uma alma, e a habitação do Espírito de Deus em nós? Seja o período longo ou curto, as Escrituras sempre apresentam este fato. Sim, no caso de Cornélio e dos que estavam com ele, assim como nos crentes batizados em Samaria, que não receberam o Espírito Santo até que os apóstolos descessem de Jerusalém.

Cornélio era, evidentemente, uma alma vivificada, assim como toda a sua casa (Atos 10.2), mas não libertada, e é por esta razão que ele permaneceu na carne, até que a Palavra chegou a ele com o poder do Espírito Santo, e, por conseguinte, o próprio Espírito Santo (Atos 10.44). Surge, portanto, a pergunta: Você já recebeu o Espírito Santo? Se ainda não, mesmo tendo sido vivificado, você continua na carne, procurando a sua melhoria — ainda que seja pelas obras da lei. Cornélio não poderia ser considerado um cristão até haver recebido o Espírito Santo; e nem você pode considerar-se, no sentido pleno da palavra, até que tenha recebido o Espírito. “Se alguém não tem o Espírito de Cristo, esse tal não é dEle.” (Rm 8.9)

Outro dia encontramos um homem já idoso, que disse haver permanecido no Egito por trinta anos. E você, leitor, está escravizado ou salvo? — Na carne ou no Espírito? Não se trata de uma pergunta para ser recebida com leviandade.

O versículo 10 não implica na erradicação do pecado, ou no aperfeiçoamento da natureza má. “E, se Cristo está em vós, o corpo, na verdade, está morto por causa do pecado.” (Rm 8.10) Se a doutrina da perfeição na carne fosse verdadeira, o corpo não poderia estar morto, e nem morrer, pois pelo pecado veio a morte. Vemos o efeito do pecado no corpo, e isto inclui a morte. “Mas o Espírito vive (ou “o Espírito é vida”) por causa da justiça.” Existe morte em razão do pecado; existe vida em razão da justiça – não nossa, mas da justiça de Deus, cumprida pela morte de Seu Filho por nós.

Deve o corpo, portanto, permanecer morto por causa do pecado? Não. “E, se o Espírito dAquele que dos mortos ressuscitou a Jesus habita em vós, Aquele que dos mortos ressuscitou a Cristo também vivificará os vossos corpos mortais, pelo Seu Espírito que em vós habita.” (Rm 8.11) Quão completa a vitória de Cristo! A redenção de nossos corpos fica assim assegurada. O Espírito de Deus habita em nós? Então a vivificação de nossos corpos mortais é certa.

Não estamos, portanto, na carne, embora ela esteja em nós; mas não somos devedores a ela, para vivermos após ela.

O fim do pecado, ou da carne, é morte. Descobrimos, para nossa tristeza, que a morte está sempre pronta para agir no corpo. “Porque, se viverdes segundo a carne, morrereis; mas, se pelo Espírito mortificardes as obras do corpo, vivereis.” (Rm 8.13) Se nossa velha natureza não tivesse sido deixada para agir em nós, não teríamos necessidade de mortificar as obras do corpo. Não se trata de mortificar o corpo, mas as obras do corpo. O importante é vermos que isto é pelo Espírito. Este é um assunto apresentado na sua totalidade em Gálatas 5.16-25.

“Porque todos os que são guiados pelo Espírito de Deus esses são filhos de Deus.” (Rm 8.14) Jesus disse: “O servo não fica para sempre em casa; o Filho fica para sempre”. (Jo 8.35) Não estamos na escravidão, mas na maravilhosa liberdade e privilégios do Filho. Acaso não foi esta a primeira mensagem que Ele, ressuscitado, deu a Maria? “Vai para Meus irmãos e dize-lhes que Eu subo para Meu Pai e vosso Pai, Meu Deus e vosso Deus.” (Jo 20.17) “Vede quão grande amor nos tem concedido o Pai: que fôssemos chamados filhos de Deus.” (1 Jo 3.1)

E qual é a prova de tudo isso? “Todos os que são guiados pelo Espírito de Deus esses são filhos de Deus.” (Rm 8.14) E também, “se sois guiados pelo Espírito, não estais debaixo da lei”. (Gl 5.18) Com toda a certeza, o Espírito não pode nos guiar sob aquela administração da lei, a qual aboliu (veja 2 Coríntios 3.7-18). Como temos visto até aqui, colocar um crente sob a lei, ou colocá-lo sob a direção da lei, é colocá-lo sob o ministério da morte e da maldição. O Espírito sempre nos levará a refletir a glória do Senhor, e a sermos transformados na mesma glória.

O Espírito concede liberdade, não escravidão. Qual é a sua porção — a liberdade dos filhos de Deus, ou a escravidão do servo, do escravo? Os filhos não deixam de ser filhos para voltarem a ser escravos. “Porque não recebestes o Espírito de escravidão para outra vez estardes em temor, mas recebestes o Espírito de adoção de filhos, pelo qual clamamos: Aba, Pai. O mesmo Espírito testifica com o nosso espírito que somos filhos de Deus.” (Rm 8.16,17) Poderia um filho deixar de ser filho?

Poderia Cristo, o Filho, deixar de ser o Filho? Porventura não ouvimos de Seus lábios que Deus é nosso Pai, tanto quanto é Pai dEle também? Este parentesco não pode nunca mudar, não pode nunca deixar de existir. Oh, as riquezas da Sua graça! Que maravilha é que nós, que estamos cônscios de que tão somente merecíamos Sua eterna ira, tenhamos sido introduzidos em um parentesco tão imutável — filhos de Deus. Um só espírito com o Filho. Agora, sem nenhuma escravidão a ser outra vez temida, mas possuindo o Espírito de adoção, será que por meio dEle clamaríamos, como pecadores distantes de Deus, “Tem misericórdia de nós”? Não! Clamamos, isto sim, Abba, Pai! E, note bem, é este o testemunho do próprio Espírito.

“O mesmo Espírito testifica com o nosso espírito que somos filhos de Deus. E, se nós somos filhos, somos logo herdeiros também, herdeiros de Deus e co-herdeiros de Cristo: se é certo que com Ele padecemos para que também com Ele sejamos glorificados.” (Rm 8.16,17) Sim, os dois grandes fatos pelos quais o Espírito dá testemunho, são os desta passagem: nossa permanente filiação e nossa posição de herdeiros. E, em Hebreus 10, Ele testemunha que somos aperfeiçoados para sempre, continuamente, pelo sacrifício único de Cristo, de maneira que Deus não Se lembrará mais de nossos pecados. Não há nada que seja negado, ou duvidado com maior frequência, do que estes dois benditos fatos.

Sim, um é o fato de nós, se crentes, sermos perfeitos para sempre. O outro é que somos co-herdeiros juntamente com Cristo. O Espírito dá testemunho disso. E, note bem, se somos co-herdeiros de toda a glória vindoura de Jesus — o Filho do homem — não deixe passar por alto estas poucas palavras: “se é certo que com Ele padecemos, para que também com Ele sejamos glorificados”. (Rm 8.17) Para constatar que isso foi assim, basta ver toda a história do livro de Atos. O mundo, e especialmente a sua parte religiosa, odiava os discípulos de Cristo tanto quanto odiava o Senhor. E os discípulos sofriam com Ele. E por que não acontece o mesmo hoje? É porque o mundo religioso agora finge ser cristão; e, oh! nós também acabamos descendo a esse mesmo nível. Mas, à medida que formos guiados pelo Espírito, acabaremos certamente sofrendo o ódio do mundo. Será que você, amado leitor, sabe o que é ser guiado pelo Espírito? Ou será que você está sendo guiado pelas organizações e pelos projetos do mundo religioso? Se assim for, não é de admirar que não saiba o que é desfrutar do parentesco de um filho de Deus, ou o que é sofrer com Cristo. Acaso você pode afirmar estar sendo guiado pelo Espírito de Deus em sua vida diária — em suas compras, em seus negócios — ou será que você é simplesmente guiado pelas máximas deste mundo? Se assim for, você está entristecendo o Espírito, e não pode desfrutar do bendito parentesco dos filhos de Deus — co-herdeiros com Cristo. Trata-se de algo maravilhoso ter o Consolador, o Espírito Santo, sempre habitando conosco, bem capaz de cuidar de nós e de todos os nossos interesses aqui, como filhos que somos de Deus. Oh, que maravilha é ser guiado por Ele em todas as circunstâncias!

Não podemos superestimar e nem subestimar a obra do Espírito, seja ela em nós, como nos falam os versículos 2 ao 13, ou de Sua obra por nós, nos versículos 14 ao 27. Então, até o final do capítulo, encontraremos Deus por nós, em toda a Sua eterna e absoluta soberania — no Seu derradeiro e tão bendito propósito para conosco, que possamos ser também glorificados juntamente com Cristo. Sim, lembremo-nos de que é este o fim que Deus tem em vista, em todos os nossos sofrimentos e aflições. Que cada leitor conheça, portanto, que aquele que não possui o Espírito de Cristo, se não for isto o que o caracteriza, esse tal não é dEle. E, mais ainda, se não estiver sofrendo com Cristo, é de se questionar se alguém assim é um co-herdeiro de Cristo, guiado pelo Espírito.

Basta recusar-se a ser guiado pelo Espírito, e você poderá receber as honras e o aplauso do mundo religioso. Se for guiado pelo Espírito, certamente você será rejeitado, assim como Cristo foi rejeitado, e passará a ser seu feliz privilégio sofrer com Ele. Mas, oh!, o que é isto em comparação com a glória a ser revelada em nós? Que contraste há entre ser guiado pelo Espírito, e ser guiado pelas modas deste mundo! Oh, quantos são os que sacrificarão a eternidade em troca das modas deste pobre e enganado mundo, enquanto, ao mesmo tempo, fingirão, sim, até mesmo pensarão, ser cristãos! Engano fatal! Se for este o estado de qualquer leitor destas linhas, que Deus possa usar estas palavras para despertá-lo de seu sono enganador. Certamente todos nós precisamos destas perscrutadoras palavras: “se é certo que com Ele padecemos”.

“Porque para mim tenho por certo que as aflições deste tempo presente não são para comparar com a glória que em nós há de ser revelada. Porque a ardente expectação da criatura espera a manifestação dos filhos de Deus.” (Rm 8.18,19) Quem podia, melhor do que Paulo, considerar este assunto? Prisões e cadeias o esperavam em cada cidade — uma vida de constante sofrimento com Aquele a Quem tanto amava servir; e ainda assim ele diz: “As aflições deste tempo presente não são para comparar com a glória que em nós há de ser revelada”. Deveras, “a ardente expectação da criatura espera a manifestação dos filhos de Deus”. Que solução para o espantoso paradoxo de toda a criação! Os gemidos dos campos de batalha cessarão; a miséria, a pobreza e a degradação das multidões; os sofrimentos da criação, tudo chegará ao fim.

“Porque a criação ficou sujeita à vaidade, não por sua vontade, mas por causa do que a sujeitou, na esperança de que também a mesma criatura será libertada da servidão da corrupção, para a liberdade da glória dos filhos de Deus.” (Rm 8.20,21) Que dia será aquele! Sim, a criação deve tomar parte na gloriosa liberdade. Ele provou a morte por cada criatura. Trata-se de um pensamento dos mais agradáveis. Se a miséria e a morte reinaram por tanto tempo, e o pecado do homem afetou tanto a criação, ainda assim a emancipação da criação deverá ser o resultado da gloriosa liberdade dos filhos de Deus.

“Porque sabemos que toda a criação geme e está juntamente com dores de parto até agora. E não só ela, mas nós mesmos, que temos as primícias do Espírito, também gememos em nós mesmos, esperando a adoção, a saber, a redenção do corpo.” (Rm 8.22) Repare que não é para a salvação de nossas almas que <B>esperamos<D>, e ansiamos, mas pela redenção do corpo. Isto pode ser tanto para os que estão na sepultura, como para os que serão transformados em um momento. Isto acontecerá na vinda do Senhor. No que diz respeito ao corpo, nem mesmo nós estamos livres do sofrimento, e de gemermos, até a vinda de nosso Senhor. Ainda não vimos Sua vinda e, por conseguinte, só podemos aguardar e ter esperança. Trata-se de um erro fatal supor que isso tudo signifique que não sabemos que temos a salvação; pelo contrário, sabemos que temos vida eterna — “Aquele que crê no Filho TEM a vida eterna”. (Jo 3.36) Não há espera para tal. Mas podemos aguardar em paciência pela redenção do corpo.

“E da mesma maneira também o Espírito ajuda as nossas fraquezas; porque não sabemos o que havemos de pedir como convém, mas o mesmo Espírito intercede por nós com gemidos inexprimíveis. E Aquele que examina os corações sabe qual é a intenção do Espírito, e é Ele que segundo Deus intercede pelos santos.” (Rm 8.26,27) Isto é algo extremamente bendito para nós. Ele conhece tudo o que nos diz respeito, e não somente a nós, mas conhece também os planos e propósitos de Deus. Podemos estar a poucos dias ou anos da redenção do corpo. Ele certamente sabe o que é apropriado para nós em circunstâncias assim. E Deus, que ouve, conhece qual é a intenção do Espírito. Se não orarmos no Espírito, podemos estar certos de que estaremos pedindo coisas que são bem inconsistentes com a dispensação ou período em que vivemos.

Entraremos agora na terceira ou última divisão de nosso capítulo. Talvez nem sempre estaremos aptos a entender, mas podemos dizer: “E sabemos que todas as coisas contribuem juntamente para o bem daqueles que amam a Deus, daqueles que são chamados por Seu decreto”. (Rm 8.28) Sabemos disso porque Deus é sempre por nós. É isto que é apresentado até o final do capítulo. “Daqueles que são chamados por Seu decreto.” Deus não nos chamou por causa de qualquer bem que pudesse existir em nós, ou de qualquer desejo de nossa parte. Notemos atentamente qual foi o Seu propósito, pois Seu chamado é o resultado de Seu decreto ou propósito.

Este é, portanto, o Seu propósito: “Porque os que dantes conheceu também os predestinou para serem conformes à imagem de Seu Filho; a fim de que Ele seja o primogênito entre muitos irmãos”. (Rm 8.29) Ele conhecia de antemão aqueles que iria chamar; e Ele os predestinou, aqueles que chamou, para este destino glorioso, para que sejam como Seu Filho, conformados à Sua imagem. Que propósito tremendo este, que Seu Filho fosse o Primogênito entre muitos irmãos! Que imenso privilégio o de termos sido chamados para compartilhar dessa posição de glória! Não devemos alterar nem uma só palavra a fim de adaptar isto aos pensamentos ou raciocínios humanos. “E aos que predestinou a estes também chamou: e aos que chamou a estes também justificou; e aos que justificou a estes também glorificou.” (Rm 8.30) Aqui é tudo de Deus, que não pode falhar. Esta é a Sua ordem. Predestinados, chamados, justificados, glorificados. De eternidade a eternidade. Que sequência maravilhosa! Que consolo inestimável para os tão sofridos filhos de Deus! Porventura Ele não nos chamou? Então isto prova que nos predestinou; e Ele nos justificou; e não deixará de nos levar para a glória. A fé certamente confiará nEle. A incredulidade com prazer deixaria que Satanás introduzisse raciocínios que eliminassem toda esta verdade fundamental. “Que diremos pois a estas coisas? Se Deus é por nós, quem será contra nós?” (Rm 8.31) Sim, se Deus é assim por nós, quem ou o quê pode ser contra nós? Veja como aprouve a Deus nos persuadir disto.

“Aquele que nem mesmo a Seu próprio Filho poupou, antes O entregou por todos nós, como nos não dará também com Ele todas as coisas?” (Rm 8.32) Alguma dúvida? Fica assim manifesto que todas as coisas devem cooperar para o nosso bem, já que Deus não poupou nem Seu próprio Filho. Que amor eterno e infinito teve Ele ao entregá-Lo por todos nós! Podemos esperar seja o que for, tendo em vista a imensidão e o caráter deste amor.

Como já vimos nesta epístola, já que é Deus, em Sua justiça, Aquele que é o Justificador, o Deus que justifica, “quem intentará acusação contra os escolhidos de Deus?” (Rm 8.33) Quem os condenará? Se Deus é nosso Justificador, poderá alguma criatura nos condenar? Foi Deus Quem demonstrou a Sua aceitação pelo nosso resgate ao ressuscitar Jesus de entre os mortos para nossa justificação. Deus O entregou por todos nós; e Ele O ressuscitou de entre os mortos para a justificação de nós todos; e Ele é a imutável justiça de todos os eleitos de Deus. “Quem os condenará?” (Rm 8.34) Deus não pode nos condenar sem condenar a Ele que foi levantado de entre os mortos para ser nossa justiça. Nossa justificação não poderia ser mais perfeita, pois tudo vem de Deus. Nossa justificação, portanto, é de Deus, e é completa e estabelecida eternamente. Resta apenas mais uma questão. Poderá qualquer circunstância alterar o amor de Cristo, ou alterar o amor de Deus em Cristo para conosco? Há tantos que duvidam que o amor de Cristo possa permanecer, caso não o mereçamos continuamente, que esta acaba sendo uma questão de grande importância. Será que não se trata de um grande erro supor que alguma vez tenhamos merecido, merecemos, ou iremos merecer esse amor? Será que são os nossos méritos, o que o Espírito de Deus coloca diante de nós?

Leia do versículo 34 ao 39. Veja quão belo e simples é: Ele coloca Cristo diante de nós. Vamos acompanhar a Palavra, uma sentença após a outra. “É Cristo Quem morreu.” (Rm 8.34) Será que Ele morreu por nós porque merecíamos o Seu amor? Poderia existir um amor como este, e, ainda por cima, amor por nós quando mortos em delitos e pecados? “Ou antes, Quem ressuscitou dentre os mortos.” (Rm 8.34) Contemple-O, o Ressuscitado de entre os mortos, como o princípio da nova criação. E isto com o propósito expresso de nossa justificação. E tudo isso, quando o que merecíamos era só a eterna ira.

“O qual está à direita de Deus.” (Rm 8.34) Aquele que carregou os nossos pecados, e que foi feito pecado por nós, nosso Representante, está à direita de Deus, como se tivesse tomado posse daquele lugar para nós. Então vem o inimigo, que enganou Eva, e diz: “Tudo isso é verdade se você nunca pecar mais após a sua conversão, mas se algum cristão pecar, certamente o pecado o separará do amor de Cristo”. Querido jovem crente, veja se seu escudo não está abaixado quando o diabo lança insinuações assim contra você. A resposta preciosa é esta: “Também intercede por nós”. (Rm 8.34) Sim, “vivendo sempre para interceder por eles”. (Hb 7.25) Imagine de quantos pecados esta intercessão nos preserva!

Mas será que se um crente, um filho de Deus, por causa de seu descuido, pecar, será que Ele irá, ainda assim, em seu infinito e imutável amor, interceder pela causa daquele que caiu? “Meus filhinhos, estas coisas vos escrevo, para que não pequeis; e, se alguém pecar, temos um Advogado para com o Pai, Jesus Cristo, o justo. E Ele é a propiciação pelos nossos pecados.” (1 Jo 2.1,2) Sim, mesmo então, em imutável amor, Ele é o mesmo Jesus, que “também intercede por nós”. Assim, tudo provém de Deus e não pode falhar. Leia agora toda a lista apresentada por estes versículos, e fiquemos persuadidos, como estava o apóstolo, de que nada “nos poderá separar do amor de Deus, que está em Cristo Jesus nosso Senhor”. (Rm 8.39) Não há condenação para aqueles que Deus justifica, aqueles que Ele tem por justos. E não há separação do infinito e eterno amor de Deus para conosco, em Cristo Jesus nosso Senhor.

CAPÍTULO 9 – A ELEIÇÃO DIVINA POR MEIO DE UMA NAÇÃO

COMO se pode perceber, há agora uma mudança na epístola. Os próximos três capítulos formam um parêntese. A justiça de Deus já foi completamente revelada e explicada em Seu proceder, tanto para com os judeus como para com os gentios, por meio da qual ambos têm acesso a Deus. Ambos igualmente culpados, e agora ambos igualmente justificados; de modo que não há mais condenação, e nem separação do amor de Deus em Cristo Jesus nosso Senhor. Todavia, se isto é assim, como ficam as promessas especiais feitas a Israel por meio dos profetas? Este é o assunto tratado nestes três capítulos.

Teria o apóstolo, que com tanta clareza trouxe à tona esta verdade de que agora não há diferença no modo de Deus tratar a ambos, deixado de amar a nação de Israel? Não, seu amor por eles era tão intenso que, como Moisés na Antiguidade (veja Êxodo 32.32), ele, por assim dizer, ficara fora de si. Ele diz: “Tenho grande tristeza e contínua dor no meu coração. Porque eu mesmo poderia desejar ser separado de Cristo, por amor de meus irmãos, que são meus parentes segundo a carne”. (Rm 9.2,3) Em alguns casos, aquele amor tão intenso levou-o a agir fora da direção do Espírito Santo, como em Atos 20.22 e 21.4. Não há dúvida de que o Senhor suportou Seu devoto servo, e transformou tudo em bem — ao menos para nós — apesar de Paulo haver sofrido a prisão e a morte. O quanto deve ter isto acrescentado à sua dor de coração — ser odiado e perseguido em cada cidade por aqueles que ele amou tão profundamente. Que semelhança com seu Senhor, ao Qual ele serviu com tanta devoção.

Paulo reconhece a totalidade dos privilégios que eles tinham como nação. “Que são israelitas, dos quais é a adoção de filhos, e a glória, e os concertos, e a lei, e o culto, e as promessas; dos quais são os pais, e dos quais é Cristo segundo a carne, O qual é sobre todos, Deus bendito eternamente: Amém.” (Rm 9.4,5)

Que privilégios! A nação adotada, com a qual Deus havia habitado no tabernáculo. Esses privilégios nunca haviam sido dados a nenhuma outra nação. O Deus eterno havia Se encarnado, vindo como Um daquela nação. Tudo isto é plenamente reconhecido. Ele que é sobre tudo, Deus bendito para sempre, no que concerne à carne, ao corpo, nasceu de Maria, da descendência real daquela nação.

Mas um outro princípio é agora apresentado. Deus havia, sem dúvida alguma, feito diferença, ainda na própria descendência de Abraão. Os da descendência de Abraão não eram todos os eleitos, filhos adotivos da promessa. “Em Isaque será chamada a tua descendência.” (Rm 9.7) “Os filhos da promessa são contados como descendência.” (Rm 9.8) Uma multidão brotou de Abraão; mas Ismael foi rejeitado, e foi só em Isaque que foi escolhida a descendência.

O mesmo propósito de Deus havia na eleição de Jacó. A Sara foi dito, “O maior servirá o menor”. (Rm 9.12) Também foi escrito, embora muitas centenas de anos depois, por Malaquias, “Amei Jacó, e aborreci Esaú”. (Rm 9.13) Este assunto do livre e soberano favor de Deus é o grande momento da explanação de Paulo; e nenhum dos que crêem nas Escrituras poderia duvidar disso nos casos a que nos referimos acima. E Deus disse a Moisés: “Compadecer-me-ei de quem Me compadecer, e terei misericórdia de quem Eu tiver misericórdia”. (Rm 9.15) Portanto, Deus certamente tinha o soberano direito de demonstrar misericórdia para com os gentios, sendo justamente isto que ofendeu tanto os judeus. É notável o fato de que todos os que dizem ser judeus agora, ou que colocam-se no terreno do judaísmo, estejam sempre disputando a soberana graça de Deus.

Muitos homens ilustres negam a soberania divina, mas Deus é mais sábio que os homens. Não podemos nos esquecer de que, pela cruz, ficou comprovado que o homem encontra-se em inimizade para com Deus. O homem não tem nada, na sua natureza, que o leve a desejar Deus. “Assim, pois, isto não depende do que quer, nem do que corre, mas de Deus, que Se compadece.” (Rm 9.16) Isto é algo extremamente humilhante, mas certamente é verdadeiro. Faraó é dado como uma amostra da impiedade do homem, e do justo juízo de Deus sobre ele. Por muito tempo Deus suportou sua ousada infidelidade e rebelião, até que, no justo governo de Deus, Faraó foi endurecido e abandonado à sua própria destruição. Que todo rebelde contra Deus fique bem atento, caso contrário a maldição de Faraó cairá também sobre ele. Faraó disse: “Quem é o Senhor, cuja voz eu ouvirei, para deixar ir Israel? Não conheço o Senhor, nem tão pouco deixarei ir Israel”. (Êx 5.2) O escarnecedor de nossos dias que se cuide, caso contrário seu coração poderá ser endurecido contra o Senhor, levando-o à eterna destruição.

“Logo pois compadece-Se de quem quer, e endurece a quem quer.” (Rm 9.18) Os homens podem dizer: Se é isto o que acontece, “por que Se queixa Ele ainda? Porquanto, quem resiste à Sua vontade?” (Rm 9.19) Não resistiu Faraó a Deus?

Não tem você resistido e recusado Deus? “Quem és tu, que a Deus replicas?” (Rm 9.20) Será que a mera criatura, a coisa formada, tem o direito de perguntar: “Por que me fizeste assim?” Jamais! Acaso Deus me formou assim? Muito pelo contrário. Seria Ele o Autor de toda a rebelião e pecado do homem? Veja que esta não é uma afirmação, mas uma pergunta — “Não tem o oleiro poder sobre o barro, para da mesma massa fazer um vaso para honra e outro para desonra?” (Rm 9.21) Não é Deus soberano? Aqui não está afirmando que Ele tenha feito alguém para desonra. Sua ira contra toda a impiedade é conhecida, mas por quanto tempo Ele suportou, com muita paciência, os vasos de ira preparados para destruição? Acaso não foi Faraó quem se preparou a si próprio para destruição? O mesmo pode ser dito de cada pecador.

Trata-se, no entanto, de uma verdade das mais benditas que Ele preparou de antemão os vasos de misericórdia para a glória. No que diz respeito a estes, é tudo o soberano favor em conformidade com as riquezas da Sua glória. “Para que também desse a conhecer as riquezas da Sua glória nos vasos de misericórdia, que para glória já dantes preparou.” (Rm 9.23) O homem prepara a si próprio para a destruição, como os judeus estavam fazendo. Deus prepara os vasos de misericórdia para a glória.

“Os quais somos nós, a quem também chamou, não só dentre os judeus, mas também dentre os gentios” (Rm 9.24), citando Oséias para comprovar isto: “Chamarei Meu povo ao que não era Meu povo; e amada à que não era amada”. (Rm 9.25) Ele prova, assim, por meio do profeta do próprio povo de Israel, que a misericórdia seria demonstrada aos gentios.

Então ele cita Isaías, e demonstra que é somente um remanescente de Israel que deverá ser salvo. Sim, “se o Senhor dos Exércitos nos não deixara descendência, teríamos sido feitos como Sodoma, e seríamos semelhantes a Gomorra.” (Rm 9.29) Certamente, o fato de haverem rejeitado Jesus, O qual Deus fez Senhor e Cristo, provou que a culpa deles nunca poderia ter sido maior. Mas a perversidade humana conseguiu chegar mais além: eles mataram o Justo e Santo de Deus, e, com tudo isso, ainda apegaram-se à lei para justiça.

“Que diremos pois? Que os gentios, que não buscavam a justiça, alcançaram a justiça? Sim, mas a justiça que é pela fé. Mas Israel, que buscava a lei da justiça, não chegou à lei da justiça.” (Rm 9.30,31) Os judeus buscavam justiça pela guarda da lei, mas nunca a alcançaram. Não acontece o mesmo até hoje? Todos os que se colocam em terreno judaico, e buscam ser justos pela guarda da lei — não importa qual lei — nunca podem alcançar justiça. Nunca podem estar certos de que estão suficientemente justos para Deus justificá-los, e, portanto, nunca chegam a ter paz com Deus. Quanto mais religião um homem inconverso tiver, mais difícil será para o evangelho alcançá-lo. E por que não chegaram à justiça ou à justificação? “Por quê? Porque não foi pela fé, mas como que pelas obras da lei: tropeçaram na pedra de tropeço.” (Rm 9.32)

E como foi que os gentios chegaram à justiça, e alcançaram a paz com Deus? Por escutarem as boas novas de misericórdia para com eles, por meio do sangue do Redentor; creram em Deus; foram justificados; tiveram, crendo em Deus, paz com Deus. E não é assim que acontece até hoje? O evangelho é ouvido por uma pessoa que cresceu sob a lei, esperando algum dia poder guardá-la até tornar-se justa, e então espera que, em um outro mundo, depois do dia do juízo, tenha vida eterna e paz com Deus. Tomada, com frequência, por dúvidas sombrias — e até presságios de uma condenação eterna — ela tenta todos os expedientes humanos — um sacerdócio no qual possa depositar, se for uma pessoa sincera, a escuridão de sua alma, o peso de seus pecados, e o pavor de seu futuro. Poderá uma pessoa assim alcançar uma justiça que a torne apta para a presença de Deus? Nunca. Poderia algum outro expediente religioso conceder a bendita paz com Deus? Nenhum.

Quão diferente é quando um pobre, culpado, ignorante e sobrecarregado pecador escuta o evangelho e crê nele, como os gentios da Antiguidade! Não possuíam a lei, e não buscavam justiça pelas obras da lei. Ouviram a doce história do amor de Deus para com pecadores como eles. Ouviram como Deus havia Se apiedado deles — sim, havia dado Seu Filho amado para morrer por eles; que Ele havia morrido, o Justo pelo injusto; que Deus O ressuscitara de entre os mortos. Ouviram as boas novas do perdão de pecados por meio dEle; ouviram, creram, foram justificados de todas as coisas, tiveram paz com Deus. Querido leitor, será que você também ouviu e creu assim? Estará você já justificado? Se assim for, não tem já paz com Deus? Nosso próximo capítulo revelará isto mais completamente.

CAPÍTULO 10 – A PROCLAMAÇÃO DE UMA PERFEITA JUSTIÇA

O APÓSTOLO faz aqui uma pequena pausa. Trata-se da pressão do amor de seu coração. “Irmãos, o bom desejo do meu coração e a oração a Deus por Israel é para sua salvação.” (Rm 10.1) Eles tinham zelo por Deus, mas não com entendimento. O apóstolo estava imensamente triste com os que causavam problemas, e buscavam inquietar os gálatas, sim, ele desejava até que fossem cortados (Gálatas 5.12). Mas o quanto ele chorou sobre a grande multidão de judeus enganados. Estamos nós tristes pela multidão que nos cerca? Podemos dizer que o desejo de nosso coração e nossa oração por eles a Deus é que possam ser salvos?

“Porquanto, não conhecendo a justiça de Deus, e procurando estabelecer a sua própria justiça, não se sujeitaram à justiça de Deus.” (Rm 10.3) Você deve estar lembrado de que a justiça de Deus é revelada no evangelho. (Veja os capítulos 1.17 e 3.21-25.) Assim, os judeus que rejeitaram o evangelho, permaneceram necessariamente ignorantes daquela justiça. E assim acontece até o dia de hoje: todo aquele que rejeita a revelação de que Deus é justo e ainda o Justificador do ímpio, acaba, se estiver ansioso para ser salvo, buscando estabelecer sua própria justiça, recusando-se, assim, a submeter-se ao fato de que Deus é justo em justificá-lo gratuitamente, por meio da redenção que há em Cristo Jesus.

O encontro do pai com o pródigo em Lucas 15 ilustrará este assunto. O pródigo, assim como o pobre gentio, caiu em si. A parábola toda é surpreendente: o pastor tinha vindo para buscar a ovelha perdida, sim, como sabemos, Ele morreu por ela. O Espírito Santo foi enviado desde o céu e procura o perdido. E agora o pai tem o seu gozo completo ao receber o filho perdido; ele, o pai, vai ao seu encontro. Um profundo exercício de consciência havia tomado lugar no pródigo. Um senso de que havia abundância na casa do pai, e uma prontidão em confessar seu pecado; isto é o que sempre marca a obra do Espírito. Todavia, até aqui ele ignorava acerca do melhor vestido.

Ele esperava ser um servo, como acontece em cada coração humano, mas estava totalmente ignorante do que lhe estava reservado. Tudo o que tinha eram seus trapos, sua culpa, sua vergonha. Tudo isso ele reconhecia diante de seu pai. Tinha ele uma túnica para apresentar ao seu pai? Não tinha nada senão trapos. Teria o pai dito a ele que fizesse uma túnica, uma vestimenta que o deixasse adequado para entrar em sua casa? Não. O pai tinha uma túnica para ele. Oh, olhe para o pai: “E, quando ainda estava longe, viu-o seu pai, e se moveu de íntima compaixão, e, correndo, lançou-se-lhe ao pescoço e o beijou.” (Lc 15.20) É assim que Deus vai ao encontro do pecador arrependido, que está em seus trapos, sem sequer uma túnica.

O pai disse: “Trazei depressa o melhor vestido, e vesti-lho, e ponde-lhe um anel na mão, e alparcas nos pés.” (Lc 15.22)

Do mesmo modo o gozo enche o coração de Deus ao receber o pecador perdido. Mas não acontece o mesmo com o irmão mais velho, que prefere lutar por uma justiça própria. Que contraste! Um erro triste e fatal! O pródigo não tinha nem uma túnica para apresentar-se ao pai. Ele não tinha nada além de trapos e pecado. O pai tinha a melhor roupa, a justiça de Deus para o pródigo. Sim, e o anel para sua mão, prova de amor eterno; e o andar condizente também lhe foi providenciado, sandálias para seus pés. Tudo novo e tudo proveniente de Deus. Israel, assim como o irmão mais velho, não podia ter essa compaixão e justificação de Deus. É certo que estavam ignorantes acerca disso. “Porquanto, não conhecendo a justiça de Deus, e procurando estabelecer a sua própria justiça, não se sujeitaram à justiça de Deus.” (Rm 10.3) Eles haviam seguido a lei da justiça; haviam tentado guardar a lei para serem justos. Haviam tentado fazer uma túnica para apresentarem a Deus; mas não conheciam a melhor roupa que Deus tinha para dar-lhes. Será este o seu caso, leitor? Será que você está tentando produzir, fazer uma justiça, para apresentá-la a Deus? Talvez você esteja perguntando: Não devo tentar guardar a lei para ser bom e apto para a presença de Deus? Você não vê onde está seu erro? Você não vê que está tentando trazer a túnica para Deus? Qual é a melhor roupa? “Porque o fim da lei é Cristo para justiça de todo aquele que crê.” (Rm 10.4) Sim, Cristo é a melhor roupa — o fim de todas as exigências, e de todos os sacrifícios da lei, que eram tipos. Deus fez dEle justiça para nós. Não necessitamos de outra justiça para entrarmos na presença de Deus nosso Pai. A justiça prática, exercitada diante dos homens, é uma outra questão, mas não é o assunto tratado aqui.

“Moisés descreve a justiça que é pela lei, dizendo: O homem que fizer estas coisas viverá por elas.” (Rm 10.5) Mas o pródigo não tinha feito estas coisas. E nós não fizemos estas coisas: somos culpados e não temos justiça para apresentar a Deus. Mas, crendo em Deus, Ele pode considerar-nos, e nos considera de fato, justos; e isso por uma obra que já foi consumada, e não algo que ainda necessite ser feito. Cristo não descerá do céu para morrer na cruz. Ele já veio aqui e morreu por nosso pecados. Ele não terá que ressuscitar de entre os mortos, pois tudo já foi feito, tudo consumado. Assim como o pai saiu ao encontro do pródigo, “a palavra está junto de ti, na tua boca e no teu coração; esta é a palavra da fé, que pregamos, a saber: SE com a tua boca confessares ao Senhor Jesus, e em teu coração creres que Deus O ressuscitou dos mortos, serás salvo”. (Rm 10.8,9) Era justamente isto o que Israel não iria fazer. Eles não confessariam que Deus fez aquele mesmo Jesus, que eles haviam rejeitado e crucificado, Senhor e Cristo. Eles se apegariam à lei para justiça, e em seus corações não iriam crer em Cristo como a justiça deles diante de Deus. E quantos estão fazendo o mesmo até hoje! Procurarão ser justos, mas nunca conseguirão. Nunca conheceram a justiça de Deus em justificá-los no momento em que cressem.

Agora o apóstolo cita, como prova, a própria Escritura que eles possuíam. “Porque a Escritura diz: Todo aquele que nEle crer não será confundido.” (Rm 10.11) Isto prova que haveria um tempo em que a doutrina do “não há diferença” estaria em vigor. “Porquanto não há diferença entre judeu e grego (ou gentio): porque um mesmo é o Senhor de todos, rico para com todos os que O invocam. Porque todo aquele que invocar o nome do Senhor será salvo.” (Rm 10.12,13; Joel 2.32.) Que bendito fato é este: todos, seja judeus ou gentios, que verdadeiramente se achegam ao Senhor, invocando-O, estão assegurados das boas vindas, assim como aconteceu com o pródigo.

O que você prefere, leitor? Nunca ter pecado e ter produzido uma justiça que o deixasse apto para comparecer diante de Deus (se fossem coisas possíveis), trazendo assim uma túnica para Deus, ou, reconhecer tudo o que você é, e tudo o que praticou, e agora, como um pecador merecedor do inferno, confessar com sua boca e crer em seu coração no Senhor Jesus, como sua eterna justiça diante de Deus? Não podemos nos detestar muito a nós mesmo; mas, oh, que profunda compaixão a que nos encontra exatamente como estamos, e nos veste com a melhor roupa, com anel e sandálias. E como nos é dado conhecer esta justiça de Deus? Leia os versículos 14 e 15 para ter a resposta. Escutando a Palavra, o evangelho da paz que nos foi enviado. Que boas novas! Aqueles que buscavam a justiça pela lei odiaram essas boas novas e os pregadores do evangelho. É exatamente o que acontece até hoje, por todos os que dizem que são judeus e não o são.

Não seria este um fato dos mais espantosos que o homem pudesse odiar e rejeitar o seu maior bem, o evangelho da paz? O homem tentará, ou pensa poder tentar, atingir algum dia a sua própria paz com Deus. Mas não terá a paz que é feita pelo sangue de Jesus; a paz que é pregada àqueles que estão longe, e àqueles que estão perto. Sim, a paz que é proclamada a todos. “Mas nem todos obedecem ao evangelho; pois Isaías diz: Senhor, quem creu na nossa pregação?” (Rm 10.16) A palavra do evangelho foi pregada a todo o Israel: mas não quiseram crer. É pregada agora, talvez como nunca o foi antes, a toda a cristandade; mas eles não a receberão. Veremos o resultado final de tudo isso no próximo capítulo.

Deus tem os que Lhe pertencem, apesar de toda a perversidade do homem, sejam judeus ou gentios, como Isaías claramente disse: “Fui achado pelos que me não buscavam, fui manifestado aos que por Mim não perguntavam”. (Rm 10.20) O apóstolo provou, assim, as duas coisas tiradas das passagens do próprio Antigo Testamento deles: que não há diferença, e que prevalece a soberania de Deus. Quem quer que seja, judeu ou grego, que invocar o Senhor será salvo — e, oh, que verdade que sustenta a alma, Ele terá misericórdia de quem tiver misericórdia. Teria Israel se perdido por Deus não desejar salvá-los? “Mas contra Israel diz: Todo o dia estendi as minhas mãos a um povo rebelde e contradizente.” (Rm 10.21) Eles não quiseram ir a Ele: eles recusaram o melhor vestido, o anel e as sandálias. Que isto não aconteça com os leitores destas linhas. Aquele que vai a Ele, de maneira nenhuma será lançado fora.

CAPÍTULO 11 – A FIDELIDADE DE DEUS

DIGO POIS: Porventura rejeitou Deus o Seu povo? De modo nenhum.” (Rm 11.1) O próprio Paulo era uma prova disto, pois ele era um israelita. “Deus não rejeitou o Seu povo, que antes conheceu.” (Rm 11.2) Não foi Deus que rejeitou Seu antigo povo: “Todo o dia estendi as Minhas mãos a um povo rebelde e contradizente.” (Rm 10.21) É importante que se veja este lado da verdade — a perfeita prontidão de Deus para que Israel — sim, até mesmo para que todos os homens — fosse salvo. O homem é o que é rebelde, o transgressor da lei, e, agora, o que rejeita da misericórdia de Deus. Vem, então, o outro lado da questão. Israel se rebelou de tal maneira contra Deus, ao ponto de Elias haver dito que só ele havia ficado. Ele disse: “Senhor, mataram os Teus profetas, e derribaram os Teus altares; e só eu fiquei, e buscam a minha alma”. (Rm 11.3) Temos aqui a profunda e universal rejeição e ódio do homem contra Deus. Trata-se do homem no pleno exercício de sua vontade própria. Mas, acaso Deus abandonou todos os homens à sua própria livre escolha e ao seu ímpio caminho?

“Mas que lhe diz a resposta divina? Reservei para mim sete mil varões, que não dobraram os joelhos diante de Baal.” (Rm 11.4) Deus não diz que eles tenham merecido, ou que tenham se resguardado; não, o que Ele diz é: “(Eu) reservei”. O mesmo que já vimos no capítulo 9, e se Deus não tivesse feito assim, todos eles teriam se tornado como Sodoma e Gomorra.

“Assim pois também agora neste tempo ficou um resto, segundo a eleição da graça.” (Rm 11.5) Sim, nessa mesma ocasião ninguém poderia negar que a nação, como tal, estava enlouquecida em sua ira contra Cristo. O próprio Saulo era uma prova do excessivo ódio dos israelitas contra Cristo. Mas, como aconteceu nos dias de Elias, houve então uma eleição de graça, de livre e imerecido favor de Deus. Querido jovem crente, você será imensamente tentado a rejeitar este abundante e gratuito favor de Deus que elege. Nos dias de hoje há poucos que crêem nisto de coração. Gostaríamos que você abraçasse isto de toda a sua alma. Será que não ficou evidente que tanto Israel como os gentios são tão maus, são grandes rejeitadores da graça de Deus, que se não fosse por Sua eleição, em livre graça e favor, ninguém teria sido salvo? Todos, todos eles teriam sido como Sodoma. Sim, a completa ruína do homem, e a eleição de Deus, são coisas que, ou permanecem juntas, ou caem juntas. Você não pode verdadeiramente tomar posse de uma e rejeitar a outra. Repare que estas passagens demonstram que não há má vontade da parte de Deus, mas o homem não quer receber a graça de Deus. Quando isto é enxergado, quão precioso é, para o crente, a bendita verdade da eleição da graça! “Mas se é por graça, já não é pelas obras: de outra maneira, a graça já não é graça.” (Rm 11.6) Isto é evidente. A salvação por obras, de qualquer tipo que seja, necessariamente coloca de lado o livre favor de Deus. Porventura você permanece no livre, pleno e eterno favor de Deus; ou está procurando alcançá-la por meio das obras?

Era exatamente isto o que Israel estava fazendo, porém “o que Israel buscava não o alcançou”. (Rm 11.7) Com toda a sua ira contra Deus, como foi revelada em Cristo, eles estavam, ao mesmo tempo, sendo zelosos da lei, e procurando justiça pelas obras. Rejeitando o livre favor de Deus, nunca poderiam obtê-la pelas obras. Por isso sua cidade foi destruída e eles foram dispersos ou mortos. “Mas os eleitos o alcançaram” (Rm 11.7), ou seja, o livre favor de Deus no qual permaneceram. Quanto ao restante, aqueles que rejeitaram o livre e imerecido favor, foram tornados cegos. E as Escrituras estão cheias de passagens para demonstrar que isto aconteceria assim como está escrito nos versículos 8 ao 10. Existem agora dois fatos. Os profetas previram que esses rejeitadores seriam entregues à cegueira judicial, e foi isto o que aconteceu ao logo de muitos séculos. Se alguém, que se considere um que rejeita da verdade da eleição da graça, estiver lendo isto, oh, você corre o risco de também ser abandonado por Deus à cegueira e endurecimento de coração. Há quanto tempo Deus estende Suas mãos, pronto para receber você? E será que você é ainda um daqueles que, como Israel em sua justiça própria, continua a rejeitar? Deus poderá, em Seu justo juízo, abandonar você à dureza de coração, e às trevas que rapidamente estão se

espalhando.

Mas será que a atual rejeição da graça de Deus por parte de Israel, e sua consequente cegueira, levam Deus a alterar Seus propósitos e Sua promessa? Devemos agora olhar cuidadosamente para o lado dispensacional desta questão. Deus transformou a queda deles em grande bênção para os gentios. E, se assim foi, quão maior não será a bênção da sua plenitude? (Romanos 11.12.) O mundo gentio foi abandonado à crassa idolatria, como vimos no capítulo 1. Mas agora, se a rejeição de Israel como nação resultou na “reconciliação do mundo” (Rm 11.15), o que será quando Deus os receber,senão vida dentre os mortos? O apóstolo não está falando aqui da vocação, ou privilégios celestiais, da

igreja, mas de privilégios terrenos. Quando Deus chamou Abraão, e o separou de entre as nações, este tornou-se a oliveira de bênção e promessa sobre a Terra. Sua descendência veio a ser aquela árvore de privilégios, da qual Abraão era a raiz. Portanto, não é uma questão de ramos em Cristo, mas de ramos da oliveira da promessa ou dos privilégios. Trata-se, também, da questão da santidade relativa, ou separação do mundo. Alguns dos ramos naturais foram quebrados, mas não todo o Israel; alguns apenas. E, levando adiante esta figura, os gentios foram enxertados nesta oliveira de privilégios.

Todavia os gentios não podem se gloriar, pois “não és tu que sustentas a raiz, mas a raiz a ti”. (Rm 11.18) E, note bem, foi por causa da incredulidade que foram quebrados. Não foi porque Deus quis quebrá-los, mas por causa de sua própria incredulidade. E os gentio permanecem pela fé. “Então não te ensoberbeças, mas teme.” (Rm 11.20) Houve juízo, com severidade, contra Israel, que caiu em razão de sua incredulidade; mas houve benignidade para com os gentios — “se permaneceres na Sua benignidade; de outra maneira, também tu serás cortado”. (Rm 11.22) Deus é capaz de enxertar Israel outra vez.

Trata-se de algo totalmente contrário à natureza enxertar a oliveira brava na boa. Na natureza, é sempre a boa oliveira, a boa macieira, que é enxertada na brava. Mas Deus tomou o pobre gentio, a planta “brava”, e o enxertou na boa árvore abraâmica do privilégio. E mais ainda, o apóstolo não os deixa ignorar esta verdade dispensacional, de que “o endurecimento veio em parte sobre Israel, até que a plenitude dos gentios haja entrado. E assim todo o Israel será salvo, como está escrito, de Sião virá o Libertador, e desviará de Jacó as impiedades”. (Rm 11.25,26) Deste modo, o período do “não há diferença” (Rm 10.12) chegará ao fim; o propósito de Deus em tirar para Si um povo de entre os gentios deverá se cumprir; então todo o Israel será salvo, conforme está escrito. Aí, então, todas as promessas que cabem a eles se cumprirão. Toda a nação de Israel, outrora dispersa, será reunida em sua própria terra, e serão então nascidos de Deus, conforme está escrito. É este o propósito de Deus, embora sejam eles os inimigos mais acirrados no tempo presente; Deus escolheu fazer assim. “Porque os dons e a vocação de Deus são sem arrependimento.” (Rm 11.29) Ele nunca muda. Nem um jota ou til de Sua Palavra poderá falhar. A tradução literal dos versículos 30 a 31 é importante: “Porque assim como vós também antigamente não crestes em Deus, mas agora fostes objetos de misericórdia pela desobediência deles, assim também estes agora não creram na misericórdia a vós demonstrada, para também serem feitos objetos de misericórdia”. Isto é algo maravilhoso, e demonstra o seguinte princípio: Ele terá misericórdia (ou “Se compadece”) de quem tiver misericórdia (ou “Se compadecer”). Os gentios não tinham nenhum direito à salvação; estavam mortos em seus pecados, em incredulidade. Deus mostrou, para com eles, pura misericórdia. Israel não poderia crer em tal misericórdia e perderam o direito a todos os privilégios por sua incredulidade, a fim de que Deus possa, no final, salvá-los como nação, ainda que como objetos de Sua misericórdia. “Porque Deus encerrou a todos debaixo da desobediência, para com todos usar de misericórdia.” (Rm 11.32) “Ó profundidade das riquezas, tanto da sabedoria, como da ciência de Deus!” (Rm 11.33) Ninguém mais, a não ser aqueles que foram salvos como objetos de Sua misericórdia, será encontrado na igreja nas alturas, ou no reino de Deus sobre a Terra. Em ambos os casos o livre favor de Deus reina, assim, triunfante. Uma palavra mais, um solene aviso antes de terminarmos este capítulo. Se a cristandade gentia não permanecer em Sua benignidade, também ela será quebrada. Será que houve antes uma época em que a benignidade de Deus, o Seu livre favor, tenha sido mais evidentemente rejeitada do que no presente momento? Nunca antes, desde os dias dos apóstolos, a livre graça de Deus foi pregada tanto, e nunca também foi tão rejeitada. Há pouco tempo visitamos uma grande cidade onde foi construído um bom e amplo salão para a pregação do puro evangelho da graça de Deus. Estava fechado. Um outro grande edifício estava ocupado por aqueles que, como Israel na Antiguidade, procuram alcançar a justiça pelas obras, pelos rituais, e, disfarçadamente, pela missa. O local estava lotado, com pessoas, sentadas e em pé. Será que Deus irá suportar isso para sempre? Certamente o fim está próximo. Os ramos gentios devem ser quebrados. Foi assim que o Espírito explicou acerca deste período de “não há diferença” nestes três capítulos, Romanos 9, 10 e 11. Depois de seu fim haverá a dispensação do reino de Cristo, como foi anunciado pelos profetas. E nesse tempo todo o Israel será salvo, como objeto de Sua misericórdia. “Glória pois a Ele eternamente. Amém.” (Rm 11.36)

Com isto termina a parte doutrinária desta maravilhosa revelação da justiça de Deus, em Seu proceder para com o homem. A leitura desta epístola de nada alerá se não for validada pelo Espírito Santo em nossos corações. Será que Ele, como vimos nas maravilhosas páginas desta epístola, tem usado assim a Sua Palavra? Será que reconhecemos verdadeiramente que somos pecadores ímpios e tão arruinados? Será que aprendemos que nunca houve, e nem pode haver, qualquer coisa boa na carne? Será que cremos em Deus que ressuscitou Jesus nosso Senhor de entre os mortos, O qual foi entregue por nossas ofensas? Será que nós, individualmente, já nos conscientizamos dessas ofensas e as reconhecemos como tendo sido transferidas para nosso santo Substituto? Será que posso dizer que Ele ressuscitou de entre os mortos para a MINHA justificação? Se assim for, certamente estamos justificados pela fé, e temos paz com Deus, por nosso Senhor Jesus Cristo. E agora, permanecendo neste livre e abundante favor de Deus, como devemos andar? Sim, depois de completamente libertos, e possuindo o Espírito de vida, qual deveria ser o fruto disso? Os capítulos que restam dão a resposta a estas questões.

CAPÍTULO 12 – CRISTIANISMO PRÁTICO

CHEGAMOS agora à justiça prática, o estado e o andar daqueles que foram feitos recipientes da graça de Deus, daqueles que foram tomados em

soberano e livre favor, e justificados de todas as coisas; sem nenhuma condenação em Cristo. É por esta mesma compaixão de Deus que estes preceitos lhes são endereçados. “Rogo-vos pois, irmãos, pela compaixão de Deus, que apresenteis os vossos corpos em sacrifício vivo, santo e agradável a Deus, que é o vosso culto racional.” (Rm 12.1) Certamente é preciso um pouco de exercício da razão, no que diz respeito ao nosso corpo, para sujeitá-lo a um culto racional ou inteligente. Estamos “esperando a adoção, a saber,a redenção do nosso corpo”. (Rm 8.23) Ele está para ser conformado ao Seu corpo glorioso. Estamos para levar a imagem do que é celestial. Mesmo no que diz respeito ao nosso corpo, logo deveremos vê-Lo e ser como Ele é. (Veja Filipenses 3.20,21; 1 Coríntios 15.48; 1 João 3.2.) Portanto, estando cientes de tudo isso, podemos sujeitar nosso corpo desde já, para que pertença a Ele, para ser usado em santa separação, por Ele e para Ele.

Que privilégio! Mas isto não será possível se estivermos conformados com este mundo — um mundo em inimizade contra Ele. E, assim como fomos renovados em espírito, “transformai-vos pela renovação do vosso entendimento, para que experimenteis qual seja a boa, agradável, e perfeita vontade de Deus.” (Rm 12.2)

Se Deus nos salvou, em pura misericórdia e compaixão, busquemos, então, de modo inteligente, procurar conhecer Sua vontade, experimentando qual é essa vontade. Isto irá exigir inteligência espiritual quanto ao tempo ou dispensação em que nos encontramos. A boa, agradável, e perfeita vontade de Deus quanto a isso só pode ser conhecida e experimentada em humildade de espírito e em completa dependência.

“Porque pela graça, que me é dada.” (Rm 12.3) Que necessidade constante há de uma consciência do livre favor que nos foi individualmente demonstrado, e concedido a cada um de nós! É isto o que nos capacita a termos um conceito humilde acerca de nós mesmos, e a pensarmos com temperança, ou pensarmos com sabedoria, conforme a medida de fé que Deus repartiu a cada um.

Assim como houve, na dispensação passada, uma nação na carne, e uma aliança de mandamentos adequada àquela dispensação, “assim nós, que somos muitos, somos um só corpo EM CRISTO, mas individualmente somos membros uns dos outros”. (Rm 12.4,5) Que contraste é isto com Israel; e devemos ter entendimento disto, ou não poderemos provar a agradável vontade de Deus para conosco neste momento. No passado, ninguém poderia estar em Cristo. Jesus devia morrer, e ressuscitar de entre os mortos, ou então permanecer só; mas somos agora um corpo em Cristo. E esta verdade deve reger toda a nossa obediência a Cristo. Devemos agir em união, como acontece com os vários membros do corpo humano, pois somos um só corpo em Cristo. Aqui não se trata tanto da doutrina do um só corpo, mas da prática de todos os membros desse corpo. Devemos estar sempre lembrando que, “tendo diferentes dons, segundo a graça que nos é dada”. (Rm 12.6) Com certeza, qualquer que seja o serviço exercido no um só corpo em Cristo, é tudo pura graça, tudo livre favor. Tendo esta bendita consciência do livre favor de Deus, sejamos diligentes no serviço, qualquer que seja ele — seja profecia, ministério, ensino, exortação ou o presidir. Que tudo seja feito com alegria. Estes preceitos são tão claros que não há necessidade de explicação, além de vermos que tudo deve ser feito em referência ao um só corpo em Cristo. Todavia, cada um destes preceitos é da maior importância, e só pode ser guardado andando-se no Espírito, pois, na verdade, estes são frutos do Espírito. Poderia a carne, que continua em nós, cumprir o “apegai-vos ao bem”, ou o “preferindo-vos em honra uns aos outros”, ou ainda o “abençoai aos que vos perseguem”? (Rm 12.10-14) De modo nenhum; ela irá sempre oprimir aquilo que é nascido do Espírito. “Sede unânimes entre vós; não ambicioneis coisas altas, mas acomodai-vos às humildes.” (Rm 12.16) Isto é exatamente o oposto das maneiras deste mundo. Quão prontos somos a esquecer este bendito ensino dos versículos 17 ao 19. Quão pronta está a carne para pagar mal com mal. E quão triste é quando a indolência toma o lugar da busca pelas coisas honestas perante todos os homens. Sim, se não tiver cuidado, o cristão pode cair em quase todas as formas de desonestidade universalmente praticadas no mundo. E acaso uma transação enganosa e desonesta não tem o mesmo caráter de um assalto? Estas são palavras que deveriam estar penduradas na parede de cada escritório, oficina e estabelecimento: “PROCURAI AS COISAS HONESTAS PERANTE TODOS OS HOMENS”. Oh, que tenhamos mais fé e uma obediência resoluta nas coisas comuns do dia-a-dia. Estamos convencidos de que a falta de cuidado nestas coisas, quando não se trata de algo pior ainda do que o descuido, é a causa de muita de nossa fraqueza. E quão pronta está a carne de cada um de nós para se vingar! Mas estas são as palavras do Espírito: “Não vos vingueis a vós mesmos, amados”. (Rm 12.19)

Será que Ele, cujo nome tão precioso levamos, vingou-Se a Si próprio? O dia da vingança e do juízo que cairá sobre um mundo ímpio ainda virá, mas não é certo que somos seguidores dAquele que curou a orelha de Seu inimigo? Oh, que possamos ser mais semelhantes a Ele! Que ternas palavras são estas: “se o teu inimigo tiver fome, dá-lhe de comer: se tiver sede, dá-lhe de beber”. (Rm 12.20) Onde, além das Sagradas Escrituras da verdade, poderíamos encontrar palavras assim? Deixe o homem entregue a si mesmo; irá ele agir assim? Não, não; estes são os preciosos frutos do Espírito. Possam eles abundar em nós cada vez mais.

CAPÍTULO 13 – DEVERES E DISCERNIMENTO

CONTINUA a senda do homem celestial sobre a Terra. Qual deve ser a sua conduta em relação ao governo deste mundo? Ele deve sujeitar-se. Deve reconhecer os poderes governamentais que são, como tendo sido escolhidos por Deus. Ele deve ficar longe da ilegalidade e da insubordinação. “E os que resistem trarão sobre si mesmos a condenação.” (Rm 13.2) O cristão deve ser, dentre todos os homens, o mais leal, até mesmo por uma questão de consciência. “Portanto dai a cada um o que deveis: a quem tributo, tributo: a quem imposto, imposto: a quem temor, temor: a quem honra, honra.” (Rm 13.7)

Deve ser observado que aqui não há nenhum preceito de que devêssemos tomar parte ou lugar na política deste mundo, mas tão somente estarmos sujeitos. A igreja, ou o cristão, é sempre visto como não sendo do mundo, mas, enquanto nele, deve permanecer em sujeição. Não importa o tipo de governo, a senda do cristão é de sujeição; e, querido jovem crente, Deus é mais sábio do que nós. “A ninguém devais coisa alguma.” (Rm 13.8) Estas poucas palavras são bem fáceis de se compreender. Não somente os débitos, mas todas as contas devem ser pagas no seu devido tempo. Para poder agir assim, o cristão deveria sempre procurar viver um padrão de vida inferior à sua renda, e comprar dentro de suas possibilidades. Isto pode exigir muita diligência e renúncia própria, mas quanta miséria pode evitar. Estas palavras, portanto, são importantes quando aplicadas ao quanto se ganha e ao que se gasta. Além disso, qualquer que seja a medida de bondade que nos for demonstrada, procuremos devolvê-la com generosos juros. “A ninguém devais coisa alguma, a não ser o amor com que vos ameis uns aos outros.” (Rm 13.8) Ah, esta é uma dívida que nunca conseguimos pagar totalmente, pois trata-se de amarmos uns aos outros como Ele nos amou.

O amor de Deus é derramado em nossos corações pelo Espírito Santo que nos foi dado (Romanos 5.5). Agora, neste exercício, este amor flui a outros — o amor de Deus em nossos corações pelo Espírito — e o resultado é que “quem ama aos outros cumpriu a lei”. (Rm 13.8) Deste modo os mandamentos que dizem respeito ao nosso próximo estão todos cumpridos. “Amarás ao teu próximo como a ti mesmo.” (Rm 13.9) Isto é feito pelo duplo poder do amor de Deus, já derramado em nossos corações, e pelo Espírito que nos foi dado. Não se trata de colocar o cristão sob a lei novamente, e dizer a ele que, se guardar a lei, Deus o amará e lhe dará o Espírito Santo. Tampouco isso é dizer a ele que ore pedindo pelo Espírito, para que possa guardar a lei. É o oposto de tudo isso. O amor de Deus e o Espírito, isso tudo o cristão já tem, e o amor não faz mal ao próximo. Portanto, o amor é o cumprimento da lei. Quão bela é a ordem de Deus, e o efeito nunca é colocado antes da causa.

Mais uma vez, nos versículos 11 ao 13, deve existir inteligência, como “conhecendo o tempo” etc. Mas se os cristãos não conhecem o tempo, porém supõem exatamente o contrário, ou seja, que o mundo está para ser convertido, ou em vias de melhorar, ou que a noite não é passada, ou até mesmo que não haja noite nenhuma, mas que estejamos vivendo o grande dia do desenvolvimento e aperfeiçoamento humano — se estiverem assim tão obscurecido e equivocados, como poderão conhecer a perfeita vontade de Deus quanto ao andar, ou à santa separação de um mundo amaldiçoado para juízo? Acaso, num estado como esse, não seria impossível conhecer a perfeita vontade de Deus? Que palavra oportuna! “Conhecendo o tempo, que é já hora de despertarmos do sono; porque a nossa salvação está agora mais perto de nós do quando aceitamos a fé. A noite é passada, e o dia é chegado.” (Rm 13.11,12) Que motivação para a santidade! Tenha cuidado com toda santidade fingida que não possua este discernimento e motivação. O quê! O Senhor está à porta, e nós, cristãos, dormimos? Pensemos no gozo que teremos, estando para sempre com o Senhor — quão perto está agora a nossa salvação — ou o dia da ira e juízo sobre este mundo que O rejeitou. “Rejeitemos pois as obras das trevas, e vistamo-nos das armas da luz.” (Rm 13.12) Se o mundo está precipitado na desonestidade desta noite escura, “andemos honestamente, como de dia”. (Rm 13.13) Que mudança haveria na conduta, até dos cristãos, se estivéssemos prontos a despertar, para aguardarmos o Senhor, dia após dia.

Será que você gostaria de ser encontrado por Ele andando em “glutonarias” e “bebedeiras”; em “desonestidades” e “dissoluções”; ou em “contendas” e “inveja”? Com certeza que não. “Mas revesti-vos do Senhor Jesus Cristo, e não tenhais cuidado da carne em suas concupiscências.” (Rm 13.14) Oh, possamos nós despertar do sono e, aguardando pelo Senhor, nos revestirmos dEle. O mundo não irá escutar o evangelho — eles não irão ler Cristo na Palavra. Possam eles, então, ver Cristo em nós, e em tudo o que fizermos — epístolas vivas, lidas e conhecidas de todos os homens.

Eles nos olharão; eles nos observarão de perto. Eles não sabem o quanto Satanás quer nos fazer tropeçar. Não conhecem as tentações e as aflições do crente, e o quão propensos somos a falhar, se não houver uma constante dependência do poder de Deus. Mas que o mundo nunca nos encontre fazendo provisão para a carne a fim de satisfazer suas concupiscências. Que Senhor abençoe estes preciosos preceitos, tanto para o escritor como para o leitor. A noite é passada, e o dia é chegado. Oh, quão cedo deveremos estar para sempre com o Senhor!

CAPÍTULO 14 – SENSIBILIDADE ESPIRITUAL

“ORA, quanto ao que está enfermo na fé, recebei-o, não em contendas sobre dúvidas.” (Rm 14.1) Podemos errar tanto de um lado como do outro. Podemos nos tornar tão estreitos a ponto de rejeitarmos um irmão fraco na fé, ou receber alguém digno de repreensão, com base em questões duvidosas, e especulações da razão. O Espírito Santo gostaria que evitássemos cuidadosamente ambos os extremos. Em muitas coisas, como comer e beber, considerar certos dias como santos, ou todos os dias iguais — em todas as coisas como estas, não devemos julgar uns aos outros, mas devemos andar juntos em amor.

“Mas tu, por que julgas teu irmão? Ou tu, também, por que desprezas teu irmão? Pois todos havemos de comparecer ante o tribunal de Cristo.” (Rm 14.10) Não se trata aqui de sermos levados a juízo por causa de nossos pecados, ou do pecado. Isto já ficou estabelecido antes nesta epístola (capítulo 8.1,33,34). O Senhor nos assegura que não seremos levados a juízo. (João 5.24.) Qual é, então, o significado aqui? Simplesmente a questão apresentada. O fato de que todos serão colocados diante de Deus, O qual não pode cometer um erro naquilo que Ele aprova, deveria ser uma prova salutar a nos prevenir do injurioso hábito de julgarmos uns aos outros. “De maneira que cada um de nós dará conta de si mesmo a Deus. Assim que não nos julguemos mais uns aos outros.” (Rm 14.12,13)

É claro que isto não nos ensina a sermos indiferentes quando a Pessoa de Cristo, ou a verdade que nEle há, é atacada: Paulo teve que resistir até mesmo a Pedro. Mas aqui nos é ensinado a “não pôr tropeço ou escândalo ao irmão”. (Rm 14.13) Pôr tropeço é não andar segundo o amor. Um irmão fraco, que me veja comendo coisas oferecidas aos ídolos, pode ser levado a fazer o mesmo, e sua consciência, sendo corrompida, ele pode cair na idolatria, e colocar-se, com o passar do tempo, sob o poder de Satanás e, no que diz respeito à comunhão, afastar-se de Cristo; na verdade, o mesmo lugar onde uma pessoa ímpia precisou ser colocada para a destruição da carne (1 Coríntios 5.5). Isto seria destruir um irmão, ao invés de destruir a carne, ou, por outro lado, ter sua consciência destruída. Em qualquer circunstância, o amor procuraria não colocar uma pedra de tropeço no caminho de um irmão. Ficamos sabendo de casos como o de uma pessoa que guarda o dia do Senhor como se fosse o shabbat (o sábado dos judeus), com uma piedade tipicamente judaica, enquanto outra, para mostrar ter um conhecimento superior a esse respeito, pratica coisas no dia do Senhor que seriam uma profanação aos olhos da outra. O resultado, em ambos os casos, tem sido desastroso. Durante anos, tanto a consciência como a comunhão de ambos estiveram perdidas ou destruídas. No entanto, não suponha, nem por um momento, que a expressão “não destruas” possa significar a destruição da vida eterna. As Escrituras não podem se contradizer. Se parecer significar isto, então ficará evidente que não entendemos o verdadeiro significado de pelo menos um dos textos. Se a vida eterna que temos em Cristo pudesse ser destruída, então já não seria eterna. E, acerca daqueles que têm vida eterna, Jesus disse: “Nunca hão de perecer”. (Jo 10.28) Isto basta para a fé. Todavia, é da maior importância termos constantemente diante de nós a consciência do tribunal de Cristo. Isto nos preservará de julgarmos demais, ou de nos devorarmos uns aos outros.

O grande tema aqui é servir a Cristo de modo aceitável a Deus. “Porque o reino de Deus não é comida nem bebida, mas justiça, e paz, e alegria no Espírito Santo. Porque quem nisto serve a Cristo agradável é a Deus e aceito aos homens.” (Rm 14.17,18) Estas são palavras preciosas: justiça, paz e alegria no Espírito Santo. Se Deus reinar em nossos corações, haverá consistência; haverá aquilo que é condizente com o santo lugar em que nos encontramos. “Sigamos pois as coisas que servem para a paz e para a edificação de uns para com os outros.” (Rm 14.19) Isto nos levará a evitarmos fazer qualquer coisa, seja comer carne ou beber vinho, com que um irmão possa se escandalizar. Todavia isto não deve nos levar a comprometer o evangelho.

Se Paulo tivesse se recusado a comer com os gentios a fim de não escandalizar a Pedro, aquilo não teria servido para a edificação, mas teria comprometido o evangelho. Seria o mesmo que dizer que Cristo não é suficiente para sua salvação eterna, que você precisa também guardar a lei. Isso porque para alguns a lei era considerada superior a Cristo. De modo semelhante, se uma sociedade de homens viesse a dizer que Cristo só não é suficiente para a libertação de um pecador e para sua completa salvação, e que você deveria assumir perante eles o compromisso de não beber vinho, não seria fé, amor, ou edificação você

comprometer o evangelho sujeitando-se a isso. Isso logo o levaria, como os mestres judaizantes, a apartar-se de Cristo.

Se Cristo não tiver a preeminência, algo mais logo terá. Satanás sempre procura usar coisas boas para tirar o lugar que é devido a Cristo. A lei é boa, a temperança é boa; mas vigiemos para que nenhuma delas venha a roubar-nos de Cristo. Precisamos nos amparar “à direita e à esquerda”. (2 Co 6.7) Estes comentários são dirigidos para os casos em que a temperança é colocada no lugar de Cristo. Que cada um de nós esteja plenamente persuadido em sua própria mente, e lembremo-nos de que “tudo que não é de fé é pecado”. (Rm 14.23) Questionemo-nos na presença de Deus: Será que preciso disto para meu corpo que pertence ao Senhor? Será que há algum irmão que conheço que ficará escandalizado se eu tomar isto? Faço-o por fé? É agradável ao Senhor que eu tome ou faça isto?

E sejamos bem cuidadosos em não nos gloriarmos nestes assuntos, ou em julgarmos nosso irmão. “Tens fé? Tem-na em ti mesmo DIANTE DE DEUS. Bem-aventurado aquele que não se condena a si mesmo naquilo que aprova.” (Rm 14.22)

CAPÍTULO 15 – UM EM CRISTO

O APÓSTOLO diz: “Mas nós, que somos fortes, devemos suportar as fraquezas dos fracos, e não agradar a nós mesmos”. (Rm 15.1) Por isso, quão ternos devemos ser neste tempo em que todos estão igualmente fracos e débeis. “Portanto cada um de nós agrade ao seu próximo no que é bom para edificação.” (Rm 15.2) Não é algo verdadeiramente belo? Onde é que podemos encontrar isto perfeitamente exemplificado? Oh, há Um, sim, Um só que é perfeito. “Porque também Cristo não agradou a Si mesmo.” Ele não procurou justificar-Se a Si mesmo; “mas, como está escrito: Sobre Mim caíram as injúrias dos que Te injuriavam”. (Rm 15.3) Seu olhar estava sempre dirigido para o alto, dirigido para o Pai; Ele era a expressão, a revelação do Pai, Deus manifestado. E todas as injúrias que recebeu, sentia serem dirigidas contra Seu Pai. Ele não respondeu; não agradou-Se a Si mesmo, mas Seu inefável prazer estava em suportar tudo, e fazer a vontade dAquele que O enviou.

“Ora o Deus de paciência e consolação vos conceda o mesmo sentimento uns para com os outros, segundo Cristo Jesus. Para que concordes, a uma boca, glorifiqueis ao Deus e Pai de nosso Senhor Jesus Cristo.” (Rm 15.5,6) Que oração esta! Quão necessária em todas as épocas, mas mais especialmente nestes últimos dias de tanta discórdia. Aqui está o modelo perfeito: “segundo Cristo Jesus”. Ele nos recebeu na glória de Deus, sim, como objetos de misericórdia em conformidade com as riquezas da Sua graça. Quando recebermos uns aos

outros, não nos esqueçamos de como Ele nos recebeu. As passagens são, então, apresentadas para demonstrar como a graça abundou para com os gentios. Isso mostrava aos judeus que não era para eles rejeitarem os gentios. Deve também ser observado que estas passagens terão seu pleno cumprimento no reino milenial. “Uma raiz em Jessé haverá, e naquele que se levantar para reger os gentios, os gentios esperarão.” (Rm 15.12)

Segue-se, então, outra oração: “Ora o Deus de esperança vos encha de todo o gozo e paz em crença, para que abundeis em esperança pela virtude do Espírito Santo”. (Rm 15.13) Com que clareza a condição da alma é conectada com a vinda do Senhor, mesmo não sendo este o tema da epístola! Possamos nós conhecer nosso Pai como o Deus de paciência e o Deus de esperança.

Devemos notar, no versículo 14, que não há ali nenhum pensamento acerca de um primeiro bispo de Roma. “Eu próprio, meus irmãos, certo estou, a respeito de vós, que vós mesmos estais cheios de bondade, cheios de todo o conhecimento, podendo admoestar-vos uns aos outros.” (Rm 15.14) Não é notável que, em toda esta carta inspirada que é endereçada aos santos em Roma, não exista uma única sentença que pudesse reconhecer ou fazer referência, ainda que levemente a um suposto bispo de Roma? Os irmãos estavam capacitados a admoestar uns aos outros; e cada um era responsável, em conformidade com a medida de graça conferida a cada um, como vimos no capítulo 12. O primeiro bispo de Roma e seus sucessores são pura invenção de uma época posterior à epístola.

Se Pedro, ou qualquer outro irmão, tivesse sido O BISPO de Roma, Paulo o teria reconhecido como tal. Ao contrário, Paulo declara seu próprio apostolado como ministro dos gentios (versículos 15-20). Para Paulo era tudo resultado do livre favor de Deus, “pela graça que por Deus me foi dada; que seja ministro de Jesus Cristo entre os gentios”. (Rm 15.15,16) E o resultado de todo esse bendito favor, Paulo podia oferecer a Deus como oferta “santificada pelo Espírito Santo”. (Rm 15.16) E então, sendo tudo resultado do livre favor de Deus, ele podia se gloriar. “De sorte que tenho glória em Jesus Cristo nas coisas

que pertencem a Deus.” (Rm 15.17) Todo jovem crente fará bem em ponderar nestes preciosos princípios divinos de serviço — de como os gentios tornaram-se obedientes ao evangelho. Foi por meio de poderosos sinais e maravilhas; não por sabedoria ou eloquência humana, mas pelo poder do Espírito de Deus. E que missão aquela aos gentios!

E repare no verdadeiro trabalho deste evangelista, de não construir sobre fundamento alheio. “E desta maneira me esforcei por anunciar o evangelho, não onde Cristo houvera sido nomeado.” (Rm 15.20) Isto é uma coisa das mais importantes. Oh, pense que ainda hoje existem milhares de cristãos nominais nas cidades e vilarejos que nunca ouviram o evangelho. E em muitos lugares há uma verdadeira sede pela simples verdade. É encorajador saber a maneira como Deus, em Sua soberania, está usando os folhetos evangelísticos. Ainda assim, é agradável a Ele que Seus santos não apenas distribuam esses folhetos, pela fé, nos lugares que estão mais além, mas que também o evangelista leve as boas novas a todo lugar “e arredores”. (Rm 15.19) Alguns poderão dizer que não são evangelistas. Não, mas vocês podem ajudar os que são; providencie para que tenham sempre um bom suprimento de folhetos e livros: estas coisas ajudam imensamente o evangelista em seu bendito trabalho de ganhar almas para Deus, e em edificá-las quando convertidas. Talvez você possa ajudar mais em oração e em simpatia para com o trabalho do evangelista. Você pode ajudá-lo a conseguir acomodações em alguma aldeia distante. Em suma, se nossos corações estão movidos na simpatia que Cristo tem para com as almas preciosas, Ele nos mostrará uma maneira de sermos auxiliadores nesta obra. Que o Senhor possa dar-nos mais desse anelo pelas almas como o que encontramos nestes versículos.

Pelo que também muitas vezes tenho sido impedido de ir ter convosco… e tendo já há muitos anos grande desejo de ir ter convosco.” (Rm 15.22,23) Este é um fato importante aqui registrado. O Espírito Santo bem sabia da futura arrogância da igreja professa, e como Roma acabaria sendo a cabeça dessas pretensões. Portanto, o Espírito toma o cuidado de

excluir qualquer informação acerca de quem tenha sido o primeiro a pregar a Cristo em Roma. Destas palavras, fica evidente que o apóstolo dos gentios não tinha ainda estado lá. E nem tampouco há qualquer partícula de evidência de que Pedro ou qualquer outro apóstolo tivesse estado ali quando a assembléia foi estabelecida. Ali os irmãos estavam capacitados a edificar uns aos outros. Aprendemos também que esta epístola foi escrita por volta da época em que Paulo subiu a Jerusalém para levar as contribuições aos santos pobres. Isso aconteceu um pouco antes de ele ser enviado a Roma como prisioneiro (Atos, capítulos 20, 21 etc.). O apóstolo não sabia quais os meios que o Senhor usaria para levá-lo a Roma. Possamos aprender disto que o Senhor pode, e quer, cumprir todos os Seus propósitos.

“E bem sei que, indo ter convosco, chegarei com a plenitude da bênção do evangelho de Cristo.” (Rm 15.29) Sim, e também duros grilhões e prisões, além do terrível vento chamado euro-aquilão o aguardavam como companheiros da viagem a Roma. Todavia seu Senhor não o desapontou. Foi de Roma, e em Roma, que o Senhor usou Paulo na exposição da plenitude do evangelho e na revelação da igreja. E foi dali que Paulo enviou o precioso manancial de verdade aos Efésios, Filipenses e Colossenses. Assim, nas mais severas tempestades da vida, podemos descansar em paciência, assegurados de que Ele tudo faz bem. Nos versículos 30 e 31 vemos como o apóstolo valorizava as orações de santos que nunca tinha visto; e o Senhor acabou respondendo àquelas orações à Sua própria maneira.

Neste capítulo Paulo falou de Deus como “o Deus de esperança” (vers. 13), e “o Deus de paciência” (vers. 5). Agora, “o Deus de paz seja com todos vós. Amém.” (Rm 15.33) Portanto, é certo que precisamos conhecê-Lo como o Deus de esperança, paciência e paz. Quão importante é que O conheçamos assim nestes últimos e dificultosos dias em que vivemos.

CAPÍTULO 16 – INSTRUÇÕES FINAIS

TEMOS agora as observações finais e as saudações. O Senhor não deixaria a devota Febe esquecida. Ela era uma diaconisa, ou serva, na igreja em Cencréia. “Para que a recebais no Senhor, como convém aos santos, e a ajudeis em qualquer coisa que de vós necessitar; porque tem hospedado a muitos, como também a mim mesmo.” (Rm 15.2) Estes versículos derramam muita luz sobre o verdadeiro caráter dos diáconos, que eram nomeados pelos apóstolos antes que a triste ruína tivesse tomado conta da igreja. Não há aqui nem mesmo uma sombra da idéia clerical moderna. “Hospedado a muitos.” Fica evidente que sua atuação era nas coisas temporais. Ela deveria ser recebida no Senhor, naquela comunhão. E que maravilhoso amor e cuidado vemos aqui. Ela deveria ser auxiliada em tudo o que fosse necessário em Roma. Nisto alguém poderia dizer: Vejam como esses cristão amam uns aos outros.

Nesta ocasião encontramos também Priscila e Áquila em Roma, e sua devoção é também assinalada. Naquele tempo não havia uma basílica de São Pedro, mas “a igreja que está em sua casa”. (Rm 16.5) E, até o versículo 16, vemos vários grupos de santos, que parecem pertencer a diferentes casas, formando todos a única assembléia de Deus* em Roma. (Veja os versículos 14 e 15.) “E aos irmãos que estão com eles”; ou, “a todos os santos que com eles estão”. (Rm 16.14,15) Portanto, existiam aqueles que assumiam uma supervisão dessas várias companhias de irmãos, ou santos. Os tais foram chamados de anciãos, ou bispos, em outras epístolas mais antigas. Mas por que não há aqui nenhuma referência a um bispo de Roma? Simplesmente porque não existia uma tal pessoa. E não é notável que não exista nesta epístola nenhuma palavra que possa ser usada para autorizar o episcopado de Roma? Quão surpreendente é a maneira como isto demonstra a sabedoria e o pré-conhecimento que Deus tinha das coisas que iriam acontecer ali!

*** O autor, que viveu no século 19, usa as expressões “assembléia de Deus” e “igreja de Deus” no seu sentido bíblico, o que inclui todos os salvos. Quando este livro foi escrito, ainda não existiam as organizações religiosas que arvoram os títulos de “Assembléia de Deus” ou “Igreja de Deus”. (N. do T.)

Compare agora a Roma daqueles dias com a que existe hoje, e veja o contraste. Se voltássemos àquela igreja que estava em Roma, conforme a vemos nas saudações, o que iríamos encontrar? Nada de papa, ou bispo de Roma, nem cardeais, nem clero, monges ou freiras; nem mesmo um só padre celebrando missa; nem grandes edifícios chamados de igrejas. Encontraríamos, isto sim, diferentes reuniões de santos por chamado, conhecendo que seus pecados haviam sido perdoados; justificados de todas as coisas; tendo paz com Deus; estando capacitados a admoestar uns aos outros. Todas essas assembléias, em casas

ou diferentes lugares, estavam sob os cuidados do Espírito Santo, e irmãos que trabalham são reconhecidos em cada uma delas — sendo todos membros do um só corpo de Cristo. Somos levados a reconhecer que não existe nenhuma semelhança entre a igreja em Roma no ano 60, e a Igreja de Roma dos dias atuais. Roma é claramente um desvio da verdadeira igreja de Deus.

Não é notável que a única pessoa citada como tendo um ofício — se assim considerarmos a diaconisa — é uma mulher? E para que as pessoas saudadas não fossem depois consideradas, ou mencionadas, como sacerdotes, ou episcopoi, há, entre os nomes, mulheres que são citadas. Quão belo era quando os irmãos estavam assim juntos na unidade do Espírito, e havia alguns irmãos e irmãs que muito trabalhavam no Senhor — como a “amada Pérsida”. (Rm 16.12) Querido jovem crente, acaso existiria alguma razão pela qual não deveríamos nos contentar, nos dias de hoje, com uma igual simplicidade?

“E rogo-vos, irmãos, que noteis os que promovem (ou formam) dissensões (ou divisões) e escândalos contra a doutrina que aprendestes; desviai-vos deles.” (Rm 16.17) Há duas coisas que devemos notar cuidadosamente. A divisão é, em si mesma, um mal — é fortemente condenada em outras passagens. (Veja 1 Coríntios, capítulos 1 e 3.) Aprendemos também que, se alguém estivesse praticando algum mal, ao causar ou formar divisões, contrariariamente à doutrina que haviam recebido, os outros deveriam evitá-los; isto é, deveriam separar-se dos tais. Mas será que os crentes que se separam e evitam aqueles que formam divisões não estarão também formando uma seita, ou divisão? Não; a obediência à Palavra não é divisão. E vou mais além: aqueles que causam divisões devem sempre ficar cientes do espírito no qual estão agindo. “Porque os tais não servem a nosso Senhor Jesus Cristo, mas ao seu ventre.” (Rm 16.18) Nunca erraremos, se Cristo for nosso único objetivo. Que feliz, portanto, quando pode ser dito que, “quanto à vossa obediência, ela é conhecida de todos. Comprazo-me pois em vós; e quero que sejais sábios no bem, mas símplices no mal.” (Rm 16.19) Trata-se de algo mortífero para a vida espiritual ficar ocupado com o mal.

“E o Deus de paz esmagará em breve Satanás debaixo dos vossos pés.” (Rm 16.20) Isto é certo: seja perseguindo ou seduzindo, isso só durará por um pouco de tempo. Ele continua sendo o acusador, mas muito em breve será esmagado. Enquanto isso, “A graça de Nosso Senhor Jesus Cristo seja convosco. Amém.” (Rm 16.20) Isto é repetido também nos versículos 20 e 24. Sim, a graça, o claro favor, o imutável amor, livre e soberano, “seja convosco”. Segue-se, então, a saudação de outros. Mas até Timóteo é chamado aqui de “cooperador”. (Rm 16.21) Que genuína humildade e amor fraternal!

Da mesma forma como Paulo encomendou os anciãos de Éfeso, em Atos 20, aqui ele diz: “Ora, àquele que é poderoso para vos confirmar segundo o meu evangelho e a pregação de Jesus Cristo, conforme a revelação do mistério que desde tempos eternos esteve oculto. Mas que se manifestou agora, e se notificou pelas Escrituras dos profetas, segundo o mandamento do Deus eterno, a todas as nações para obediência da fé; ao único Deus, sábio, seja dada glória por Jesus Cristo para todo o sempre. Amém.” (Rm 16.25-27)

Sim, Deus é capaz de confirmar todos os crentes em conformidade com aquilo que Paulo chama de “meu evangelho”, minhas boas novas. As boas novas comissionadas a Paulo têm um amplo espectro. O fundamento sólido daquelas boas novas já pudemos ver desdobrados nesta epístola – – a justiça de Deus revelada em justificar o ímpio — tanto no que se refere aos pecados, até o capítulo 5.11, como também ao pecado, do capítulo 12 ao 18.4. Ela contém também as boas novas de libertação do pecado e da lei; paz com Deus; nenhuma condenação para os que estão em Cristo Jesus, seja com respeito aos pecados ou ao pecado; e nenhuma separação possível do amor de Deus que há em Cristo Jesus.

Há aqui também uma breve referência a uma revelação que vai ainda mais além, a do mistério que foi mantido em segredo desde o começo do mundo. Este mistério é explicado na sua plenitude em Efésios 3. Não foi feito manifesto nas Escrituras dos tempos do Antigo Testamento. E como poderia, já que era mantido então como um profundo segredo? Todavia foi revelado pelas Escrituras proféticas, isto é, aquelas do Novo Testamento. De qualquer modo, é notável com que rapidez esse mistério celestial foi perdido, e a cristandade voltou a um judaísmo terreno. Não apenas colocou-se sob a lei em busca de justiça, mas também estabeleceu um governo mundano na igreja, numa imitação do judaísmo, de maneira que muito cedo qualquer característica da igreja, conforme é vista nas Escrituras, acabou ficando perdida por muitos séculos. Assim é o homem. Ele sempre agiu tolamente; toda a sua sabedoria não passa de pura tolice.

As palavras finais da epístola nos dirigem, não ao homem ou àquela que se chama a si própria de igreja, mas “ao único Deus, sábio, seja dada glória por Jesus Cristo para todo o sempre. Amém.” (Rm 16.27) Não importa o quanto o homem tenha falhado; não importa o quanto a igreja possa falhar como um testemunho de Deus sobre a Terra; Deus será eternamente glorificado, por Jesus Cristo nosso Senhor. Amém.

Charles Stanley