No presente momento prevalecem duas grandes ideias do mundo, no que diz respeito à sua existência nacional, política e social. Elas são radicalmente diferentes e claramente incoerentes uma em relação à outra, todavia o atual estado de coisas nos leva a suspeitar que ainda está para ser encontrada uma forma de poder reuni-las em uma espécie de amálgama, e a voz das Escrituras proféticas nos confirmam essa expectativa. As duas grandes ideias são, respectivamente, a democrática e o imperialismo. Há muito tempo ambas têm estado em cena.
A democracia se nos apresenta como o produto acabado da sabedoria das eras. Pode-se dizer que a história nos dá o registro longo e sombrio de experiências humanas na arte de governar, e com base na experiência passada a ideia democrática tem evoluído e agora detém o domínio entre as nações esclarecidas. Usando a famosa frase de Abraham Lincoln, trata-se do “governo do povo, pelo povo, para o povo”. Na prática, ela resume-se à ideia de pessoas serem governadas por uma maioria — pois nunca há unanimidade e, portanto, a minoria deve ceder — e que a maioria deve governar por meio de seus representantes acreditados para o bem de todas as pessoas, e não para os interesses apenas da maioria. Se a democracia faz realmente isso é, naturalmente, outra história.
A ideia imperialista tem como lema “a união faz a força”. No contexto nacional ela cria alianças e ligas poderosas entre grupos de nações. Na política ela se expressa em grupos de partidos que visam alcançar o que eles não poderiam conseguir fazer individualmente. Socialmente ela produz corporações gigantes, federações de indústrias, sindicatos etc. Ela ainda pode ser vista no mundo religioso na forma de uma federação de “igrejas”. Ela é, na verdade, um retrocesso para a velha ideia que animou os antediluvianos em seus esquemas em Babel. (Veja Gênesis 11: 1-9).
Nossa preocupação atual não é de todo com as vantagens ou desvantagens políticas da democracia. No entanto, a fim de obtermos a luz que a Palavra de Deus derrama sobre ela, desejamos discernir o seu verdadeiro caráter e prever aonde ela chegará com o tempo. Em primeiro lugar, portanto, devemos perguntar às Escrituras qual seria o modo de Deus para o governo da terra. Ele tem, naturalmente, uma opinião sobre o assunto, e quanto mais nós a aprendermos com clareza, mais estaremos em posição de julgarmos toda e qualquer teoria proposta pelo homem.
No início, Adão, como um ser ainda não caído, foi colocado na posição de única autoridade. Ele era a imagem de Deus ou Seu representante e tinha domínio sobre as classes mais baixas de seres criados (Gn 1:26). Nenhum pensamento de autoridade sobre outros homens existia naquele momento. Este ponto não foi levantado até que o pecado tivesse entrado em cena. Sua autoridade, do modo como lhe fora concedida, era absoluta, e sua responsabilidade era apenas para com Deus.
Após o pecado ter invadido a criação, um longo tempo se passou durante o qual nenhuma autoridade havia ainda sido delegada ao homem por Deus e, portanto, nenhum homem tinha qualquer autoridade sobre os seus semelhantes. Essa era terminou com o dilúvio.
Todavia, a primeira era pós-diluviana iniciou-se com uma maior delegação de autoridade. Noé, e seus filhos após ele, receberam a responsabilidade de manter os direitos de Deus no homem, especialmente no que diz respeito à sacralidade da vida humana. (Veja Gn 9, 5 e 6). Deus ali delegava a certos homens autoridade sobre seus semelhantes, ao ponto de estarem autorizados a executar a pena capital. A autoridade patriarcal era assim estabelecida.
Entre aqueles que logo depois deixaram de lado o temor de Deus, e “não se importaram de ter conhecimento de Deus”, conforme coloca Rm 1:28, esta autoridade, evidentemente, mudou a sua forma. Não era mais patriarcal em seu caráter, mas acabou caindo nas mãos de homens hábeis e de renome, como Nimrod (Gn 10:8-10) e, após a confusão das línguas em Babel, apareceram as nações com seus “reis” (Gn 12:15; 14:1-2).
No entanto, aqueles que ainda temiam a Deus aderiram à ordem patriarcal, até que Deus empregou Sua mão para libertar Israel do Egito e levantou Moisés. Aquilo marcou um novo começo. Moisés foi investido por Deus de uma autoridade no meio de Israel muito além de qualquer coisa que Noé tivesse recebido. É verdade que no início sua autoridade foi rejeitada. “O que ofendia o seu próximo o repeliu, dizendo: Quem te constituiu príncipe e juiz sobre nós?” (At 7:27), mas também lemos que “a este Moisés, ao qual haviam negado, dizendo, ‘Quem te constituiu príncipe e juiz?’, a este enviou Deus como príncipe e libertador, pela mão do anjo que lhe aparecera na sarça” (At 7:35). Moisés era de fato “rei em Jesurum” (Dt 33:5), mas aquele era um reinado de uma ordem informal. Propriamente falando, a teocracia tinha sido criada em Israel tendo Moisés como seu porta-voz e mediador e, portanto, rei nesse sentido .
Por séculos assim foi a autoridade, conforme havia sido estabelecida em Israel, mas seu poder declinou e aqueles que vieram depois eram muito inferiores em fidelidade e vigor. “E nunca mais se levantou em Israel profeta algum como Moisés, a quem o Senhor conhecera face a face” (Dt 34:10).
A debilidade resultante levou a um clamor por um rei como tinham as nações (1 Sm 8:5), e após o episódio do rei teimoso e segundo a preferência do povo, Deus levantou a David e estabeleceu autoridade real em uma base adequada. Ele era para ser príncipe sobre o povo de Deus e executor de juízo sobre seus inimigos (2 Sm 7:8-9). Ele também era para dar a Israel sua herança. Então, ele os alimentou, segundo a integridade do seu coração; e os guiou com a perícia de suas mãos (Sl 78:71-72). A autoridade de Davi era absoluta, e cabia a ele governar. Ele devia executar juízo quando necessário, mas devia também alimentar seus súditos e orientá-los. Seu governo era para ser absoluto, mas também totalmente beneficente.
Com o fracasso da descendência de Davi perdeu-se a glória de seu governo, e finalmente Deus transferiu a autoridade para as mãos dos gentios. Esta foi confiada inicialmente a Nabucodonosor, conforme mostrado em Daniel 2:37-38 e, embora o sonho do grande rei, como é registrado nesse capítulo, prenunciasse as mudanças que viriam nas formas de governo, no entanto, mostrava que a autoridade por detrás do governo, qualquer que fosse a sua forma, permaneceria nas mãos dos gentios até que a execução súbita da ira divina sobre todo o orgulho e abuso do poder que fora confiado ao homem fosse um fato consumado.
Então deveria aparecer o reino que seria “de eternidade a eternidade” (Dn 2:20), e esse reino será dado ao Filho do Homem, que irá exercer o domínio absoluto para a bênção dos homens (Dn 7:13, 9). Ele irá desejar, no entanto, levar e usar em conexão com seu governo os santos “do Altíssimo” ou “dos lugares altos” (versículos 18 e 22), e também um “povo” que irá possuir o reino “debaixo de todo o céu”, ou seja, em sua esfera terrestre. Este povo, evidentemente, é Israel.
Este rápido esboço do curso do governo entre os homens é suficiente para mostrar que existe uma característica que prevalece do começo ao fim: Deus — e Deus somente — é sempre a autoridade final. A nenhum homem foi dado o direito de exercer autoridade sobre os seus semelhantes, exceto aquela que ele recebeu de Deus. É por isso que em passagens como Rm 13:1-6 e 1 Pe 2:13-15 a obediência às autoridades governantes é ordenada ao cristão. O apóstolo Paulo nos diz que “não há potestade que não venha de Deus; e as potestades que há foram ordenadas por Deus”.
Passando agora do governo, tal como nos é apresentado nas Escrituras, para a prática do mesmo por aqueles a quem ele foi confiado na Terra, logo vemos que a autoridade delegada sofreu um terrível abuso, como tudo o mais que foi confiado ao homem caído. A tirania e o egoísmo têm crescido em todos os lugares, e a história é um registro das longas e dolorosas lutas por meio das quais as nações passaram de uma forma de governo para outro, ou introduziram modificações em seus vários sistemas governamentais na vã esperança de evoluírem para uma condição ideal. De todas essas mudanças a democracia é a mais recente, e não é surpresa para ninguém que seu nascimento tenha sido versado nos mesmos abusos que a conceberam.
Comparando-a, entretanto, não com os seus antecessores, mas com os ideais das Escrituras que devem ser plenamente realizados no Milênio, logo vemos que ela está irremediavelmente condenada, à semelhança de qualquer outra forma de governo que já tenha existido. A razão é que ela, de forma aberta e despudoradamente, depõe Deus como fundamento e fonte de autoridade e coloca o homem– ou seja, “o povo” — em Seu lugar. O abismo entre os dois é tão grande quanto o que existe entre o céu e o inferno.
Para o democrata convicto existe apenas uma questão que realmente importa, isto é, saber qual é a vontade do povo. Perguntar o que pode estar certo — ou o que, em outras palavras, pode ser a vontade de Deus — passa a ser irrelevante. O que as pessoas desejam é o que será considerado como sendo a coisa certa, e as funções de um governo verdadeiramente democrático são a realização dos desejos do povo, colocando-se como humilde servo da vontade deste — seja ela certa ou errada.
Nesta questão, como em todas as outras, a cruz de nosso Senhor Jesus Cristo coloca o cristão diante de um teste supremo. Naquela hora solene, Pôncio Pilatos, o governador que representava César, tinha poder absoluto sobre Cristo, detido e acusado sob sua jurisdição. No entanto, em um momento de fraqueza incomum, a autocracia abdicou de suas funções. O registro daquela hora é apresentado da seguinte forma:
“Então Pilatos, vendo que nada aproveitava, antes o tumulto crescia, tomando água, lavou as mãos diante da multidão, dizendo: Estou inocente do sangue deste justo. Considerai isso.” (Mt 27:24).
“Mas eles instavam com grandes gritos, pedindo que fosse crucificado. E os seus gritos, e os dos principais dos sacerdotes, redobravam. Então Pilatos julgou que devia fazer o que eles pediam.” (Lc 23:23-24).
Como representante de César, Pilatos lavou as mãos de toda aquela questão, ao mesmo tempo em que, atuando como presidente de uma democracia que exerceu por apenas um breve instante, ele “julgou que devia fazer o que eles pediam”. Do ponto de vista da aplicação dos princípios democráticos isso pode ter sido visto como correto. Porém, se enxergado de qualquer outro ângulo, representou o mais ultrajante erro já cometido em toda a história da humanidade.
Voltando ao sonho de Nabucodonosor conforme registrado em Daniel 2, podemos compreender melhor o significado do barro que entrou na estátua quando chegamos aos seus pés.
A visão de Daniel em Daniel 7 apresenta o curso dos quatro grandes impérios gentios nas suas relações entre os homens, e eles são retratados como animais selvagens em seu poder de destruição. O sonho de Nabucodonosor, por outro lado, nos apresenta os mesmos quatro impérios, mas como se estabelecesse o caráter e a qualidade de seus governos e, portanto, o que os identifica é uma constante deterioração nos metais ali mostrados.
Deus começou os “tempos dos gentios” com uma forma ideal de governo, embora o homem que exercia seu poder estivesse longe de ser o ideal. Que essa era uma forma ideal é comprovado pelo fato de que Deus irá usá-la no milênio, quando o Homem ideal aparecer e, por meio dessa forma ideal de governo, “julgar o mundo com justiça”. Logo tudo será paz e bênção. À medida que se desenvolveram os impérios os homens se desviaram do ideal de ouro introduzindo modificações humanas, e o governo tornou-se prata, bronze e ferro, à medida que mais e mais pensamentos divinos eram deixados de lado e políticas humanas vinham à tona.
É, no entanto, na última fase do último império — a fase romana — que se encontra pela primeira vez a introdução de barro — uma substância não-metálica. Esse foi um sinal evidente de que antes do fim deveria ser introduzida no sistema de governo prevalecente um princípio que não era tanto uma completa modificação do antigo, mas mesmo assim era algo fundamental e radicalmente diferente. “Assim por uma parte o reino será forte, e por outra será frágil” (Dn 2:42). A interpretação dada por Daniel à mistura de ferro e barro é que “[eles] misturar-se-ão com semente humana, mas não se ligarão um ao outro, assim como o ferro não se mistura com o barro” (Dn 2:41).
O “eles” desta passagem parece significar aqueles em cujas mãos por enquanto repousa a autoridade. Não hesitamos em ver aqui uma previsão do levante e prevalência de uma democracia nos últimos dias. A autoridade que tem a sua fonte em Deus, comparada àquela que tem a sua fonte no homem, são tão diferentes entre si como ouro, ferro ou qualquer outro metal comparados ao barro. São duas coisas que podem ser misturadas, e em certa medida são inextricavelmente misturadas em teoria e prática no governo moderno, mas o resultado é apenas fraqueza e fragilidade. Logo virá o golpe mortal administrado pela pedra “cortada sem mãos”.
Se alguém tem dificuldade em conciliar o que é dito acima com as profecias sobre a vinda do líder inspirado por Satanás para o império romano revivido, gostaríamos de sugerir que se lembre de que, na prática, a transição de uma forma democrática de governo para uma imperialista é muito fácil. Basta surgir um homem que seja considerado um expoente, que pareça encarnar em si o espírito do “povo”, e nada é mais fácil para ele do que assumir para si os poderes que teoricamente pertencem ao povo, e as pessoas, inconstantes e facilmente levadas, ficarão contentes de tê-lo assim. A carreira de Napoleão I, fruto da Revolução Francesa, é um exemplo disso. A futura “besta” de Apocalipse 13 sobe “do mar”, ou seja, das massas do povo em um estado de agitação e inquietação.
Portanto, é mais do que provável que esse próximo “super-homem” irá defender com veemência as instituições democráticas em teoria, enquanto exerce um regime autocrático na prática — ferro misturado com barro.
O leitor que pacientemente nos seguiu até este ponto pode ser inclinado a perguntar qual é o nosso objetivo em escrever tudo isso, se não temos, como se diz, finalidade política. Confessamos, sem hesitação, que o nosso objetivo é ter uma separação de coração mais clara do presente século mau para nós e para todos os crentes. Sabemos muito bem que nada além de uma consciência permanente da excelência do conhecimento de Cristo Jesus, nosso Senhor, pode efetivamente elevar nossas almas acima do nível do mundo e seus pensamentos, mas a exposição da política mundial e seus esquemas à luz das Escrituras tem seu valor, e este tem sido o nosso esforço presente.
Como diz 2 Pedro 1:19, a luz das Escrituras proféticas alumia em lugar escuro. Deixe essa luz lançar seus raios sobre os princípios tão apregoados da socialdemocracia e você verá quão frágil ela é. A argila pegajosa pode ser dourada, mas certamente não é ouro! O cristão esclarecido não vai se entusiasmar muito com ela. E quão clara é a luz que as Escrituras lançam sobre a controversa questão do cristão dever votar ou não ou interessar-se com política em geral. Somos convidados a aceitar a posição de uma pequena engrenagem nessa máquina chamada “o povo” que tem usurpado para si aquela função na esfera de governo que pertence somente a Deus. Devemos aceitar tal posição? Sim, se acreditarmos no moderno “evangelho” humanista que humaniza Jesus e diviniza o homem. Mas se acreditamos que a salvação não é do povo, mas do Senhor, então não.
O sistema mundial está condenado, e que não haja hesitação em nosso testemunho quanto a este fato. Almas estão sendo resgatadas para fora dessa catástrofe iminente pela abundante graça de nosso Senhor. É nosso dever buscá-las, dando testemunho de nosso Senhor Jesus Cristo. Portanto, não percamos nosso tempo em vãs tentativas de fortalecer essa trama que cambaleia, mas vamos nos ocupar com aquilo que é a grande obra que o Senhor designou para nós. Sermos completamente dedicados a Ele e aos Seus interesses é estarmos completamente fora do sistema mundial e suas esperanças.
Buscamos, não um sistema aperfeiçoado de democracia, mas Aquele “que transformará o nosso corpo abatido, para ser conforme o seu corpo glorioso, segundo o seu eficaz poder de sujeitar também a si todas as coisas” (Fp 3:20-21.). E no que diz respeito a esta terra, olhamos para a criação do reino de Cristo pelo Deus do céu, o qual não será jamais destruído mas subsistirá eternamente.
(“Democracy in the Light of Scripture”, F. B. Hole – Extraído de “Scripture Truth”, Vol. 12, 1920, página 108)