A suma da verdade ensinada neste salmo é que “louvarão ao Senhor os que O buscam” (Sl 22:26). Trata-se do fruto da pura graça, expressa de uma maneira notável e bem diferente de uma esperança ou promessa. Com toda a certeza, o fato de que o Santo devesse ser desamparado por Deus não se trata de uma promessa, e é esta a base que é posta aqui para o louvor.
No Salmo 19 temos o testemunho da criação e da lei. É solene pensarmos que tudo aquilo que o homem tocou, ele corrompeu. A criação geme enquanto o homem se encontra ali. Mas se olho para onde o homem não pode alcançar, a Lua, as estrelas etc., tudo é glorioso[1]. “Os céus manifestam a glória de Deus e o firmamento anuncia a obra das Suas mãos.” (Sl 19:1). “A lei do Senhor é perfeita, e refrigera a alma: o testemunho do Senhor é fiel, e dá sabedoria aos símplices. Os preceitos do Senhor são retos, e alegram o coração: o mandamento do Senhor é puro, e alumia os olhos. O temor do Senhor é limpo, e permanece eternamente; os juízos do Senhor são verdadeiros e justos juntamente. Mais desejáveis são do que o ouro, sim, do que muito ouro fino; e mais doces do que o mel e o licor dos favos. Também por eles é admoestado o Teu servo; e em os guardar há grande recompensa.” (Sl 19:7-11). A questão aqui não está em se o homem pode ou não guardá-la, mas na sua perfeição intrínseca e no seu valor para aqueles que, por graça, desfrutam da sua luz. Nenhum destes testemunhos pode ser mudado.
Cedo o homem encheu a Terra com corrupção e violência. “E viu Deus a Terra, e eis que estava corrompida… Então disse Deus a Noé: o fim de toda a carne é vindo perante a minha face; porque a Terra está cheia de violência.” (Gn 6:12-13). Os céus cobrindo tudo, e o Sol seguindo em seu incansável circuito, de uma extremidade à outra dos céus, são testemunhos claros e imutáveis da glória divina, fora do alcance corruptor do homem. A lei de Jeová não pode mudar; mas se o homem não pode mudar a lei, ele a desobedece. O efeito da lei é exigir de um homem pecador que ele não seja pecador.
Note, de passagem, a ordem dos procedimentos de Deus. Quando o pecado entrou, Deus disse que a Semente da mulher deveria esmagar a cabeça da serpente. Não foi uma promessa para Adão, mas sim o juízo pronunciado sobre Satanás; se for uma promessa, então diz respeito ao segundo Homem. Vem então uma palavra de promessa formal feita a Abraão, o pai dos que são da fé (Rm 4:16): “Em ti serão benditas todas as famílias da Terra” (Gn 12:3). Depois disso, após o sacrifício consumado no monte Moriá, as promessas foram feitas, incondicionalmente como antes, à sua Semente. Todavia a questão da justiça deve ser levantada, pois Deus é o Deus justo. A bênção sob a lei dependia tanto da fidelidade do homem quanto de Deus. Foi dito no Sinai: “Agora pois, se diligentemente ouvirdes a minha voz, e guardardes o meu concerto, então sereis a minha propriedade peculiar dentre todos os povos” (Êx 19:5). A lei levantava a questão da justiça e obrigava o homem à obediência, ao invés de fazê-lo assumir seu lugar como pecador. “Então todo o povo respondeu a uma voz, e disseram: Tudo o que o Senhor tem falado, faremos.” (Êx 19:8). Isso era a lei, e Israel debaixo dela: “Todos aqueles pois que são das obras da lei estão debaixo da maldição” (Gl 3:10). Muito tempo depois levantou-Se outra Testemunha – Um que testificou da natureza moral de Deus bem como do Seu poder – Um que manifestou a justiça de Deus ao invés de meramente exigi-la do homem – Um que veio trazendo deveras Consigo todas as promessas, se tão somente tivesse sido recebido.
E como foi Cristo recebido? Ele foi completamente rejeitado. No Salmo 20 o Messias é visto no dia da tribulação. Assim estarão os judeus na tribulação que virá: identificando Jesus como seu Salvador. O Salmo 21 é a resposta ao desejo fiel do povo acerca do Ungido de Jeová e a expressão de sua alegria ao vê-Lo exaltado como Rei. Ele foi ouvido e recebeu aquilo que era o desejo do Seu coração.
Temos no Salmo 22 algo totalmente diferente: Cristo sendo abandonado por Deus. Não se trata apenas de ter sido Ele desprezado pelo povo: fortes touros de Basã O cercaram, os cães O rodearam, o ajuntamento dos malfeitores O cercou; mas o que era tudo isso, que a ninguém mais do que a Cristo poderia ter feito sofrer tanto, o que era tudo isso perto da terrível realidade de Cristo sofrendo nas mãos de Deus – de Cristo sofrendo pelo pecado? Trata-se de uma cena triste, porém proveitosa, vermos o papel do homem nisso; pois todos compartilham da mesma natureza, e nós não éramos diferentes. Mas volte-se para o outro lado, e o que é que você vê? Cristo revelando o que Deus é, e Ele é amor, mesmo quando se tratava da questão de nossos pecados.
O que é o homem? O que era Pilatos? Um juiz injusto, que lavou suas mãos enquanto condenava à morte Aquele a Quem, por três vezes, proclamou ser inocente; e isso sob a instigação – sob a intercessão! – dos principais sacerdotes e legisladores do povo de Deus. E os discípulos, o que eram eles? “Então todos os discípulos, deixando-O, fugiram… e Pedro O seguiu de longe.” (Mt 26:56,58). E quando chegou ao palácio, Pedro praguejou, jurou e negou a Jesus vez após outra. Tome o homem em que situação preferir: se Cristo estiver ali tudo será colocado à prova, e o que vem à tona é só pecado. A Sua cruz, Sua morte, revelou o verdadeiro caráter de todos. Moralmente, a história do homem está encerrada. “Mas agora na consumação dos séculos uma vez Se manifestou, para aniquilar o pecado pelo sacrifício de Si mesmo.” (Hb 9:26). O homem foi pesado na balança e achado em falta em todos os aspectos. “A carne para nada aproveita” (Jo 6:63); ela transgride a lei e insulta a graça. Posso ler na cruz o fim de tudo o que sou como homem. “Mas onde o pecado abundou, superabundou a graça.” (Rm 5:20). E há muito mais ali. Na cruz ficou pendurado Aquele bendito Homem, sem mancha, todavia abandonado por Deus. Que tremendo fato diante do mundo! Não é de se maravilhar que o Sol tenha se escurecido – aquele testemunho esplêndido e central da glória de Deus na natureza – quando a Testemunha Fiel e Verdadeira clamou ao Seu Deus e não foi ouvida.
Abandonado por Deus! Sabe o que isso significa? O que tem o homem a ver com isso? Qual é a minha parte na cruz? Só uma – meus pecados. Aqui está, portanto, Alguém abandonado por Deus e clamando isso diante de todos os homens. Ao contrário do Salmo 20, aqui não há ninguém que O veja e que simpatize com Ele. As mulheres que O seguiram desde a Galileia estavam ali olhando de longe, mas não entendiam. Confunde o pensamento – aquela hora tão solene quanto única que permanece distinta de qualquer momento que possa ter existido antes ou depois. Como há nela o brilho da perfeição de Cristo! “E era o varão Moisés mui manso, mais do que todos os homens que havia sobre a Terra” (Nm 12:3); no entanto seu espírito foi de tal modo provocado que seus lábios falaram loucamente. “Ouvistes qual foi a paciência de Jó” (Tg 5:11); no entanto ele abriu sua boca para amaldiçoar o dia em que nasceu e reclamou que o “Guarda dos homens” tivesse feito dele um alvo, para que a si mesmo fosse pesado (Jó 7:20). Em Cristo nada houve, em Suas expressões, que não fosse perfeito.
Mas se tenho algo a dizer a Cristo, qual é o meu primeiro pensamento? O que é que levo até a cruz? O que eu encontro ali? Meus pecados. Nenhuma vaidade há que não tenhamos preferido em lugar d’Ele. Que pensamento humilhante para nós – que pensamento humilhante para mim! O Justo, sofrendo pelo pecado, justifica a Deus, justamente nas profundezas da Sua agonia, quando Deus O abandonou, quando, por assim dizer, Ele mais precisava de Deus. “Porém Tu és Santo, O que habitas entre os louvores de Israel. Em Ti confiaram nossos pais; confiaram, e Tu os livraste. A Ti clamaram e escaparam: em Ti confiaram, e não foram confundidos. Mas Eu sou verme…” (Sl 22:3-6). Era a obediência – o sofrimento – levado ao seu último termo; mas, apesar de abandonado como foi, Cristo diz que Seu Deus continuou Santo como sempre. Sabemos agora o por quê. Foi por causa do pecado, por nossos pecados, não por nossa justiça. Nossos pecados foram a nossa única contribuição. Que parte essa a que coube a nós; quanto à parte que coube a Ele, que bendito amor!