A TOTAL SUFICIÊNCIA DE CRISTO

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Primeira Parte – A obra de Cristo como o único lugar de descanso para a consciência

A partir do momento em que a alma é levada a sentir a realidade de sua condição diante de Deus – a profundidade de sua ruína, culpa e miséria – sua completa e irremediável ruína, não poderá haver descanso até que o Espírito Santo revele ao coração um Cristo pleno e todo-suficiente. É esta a única solução possível, e o remédio perfeito de Deus, para nossa completa ruína.

Trata-se de uma verdade muito simples, mas da maior importância; e podemos dizer, com toda a segurança, que quanto mais completa e profundamente o leitor aprender isso para si mesmo, melhor será. O verdadeiro segredo da paz está em se descer até o fundo de um eu irremediavelmente culpado, arruinado e sem esperanças, e aí encontrar um Cristo todo-suficiente como a provisão de Deus para nossa mais profunda necessidade. Isto é verdadeiramente descanso – um descanso que nunca pode ser perturbado. Pode haver tristeza, pressão, conflito; pode existir um exercício de alma, e o fardo de se ter que passar por múltiplas tentações, por subidas e descidas e por toda sorte de dificuldade e tribulação; mas sentimo-nos persuadidos de que quando uma alma é verdadeiramente levada pelo Espírito de Deus a enxergar o fim do seu próprio eu, e a descansar em um Cristo pleno, ela encontra uma paz que nunca poderá ser interrompida.

O estado de incerteza em que vivem muitos dos queridos do povo de Deus é o resultado de não terem recebido em seus corações um Cristo pleno, como a provisão exata do próprio Deus para eles. Não há dúvida de que este resultado triste e doloroso pode ser gerado com a ajuda de diversas causas, como uma mentalidade legalista, uma consciência mórbida, um coração que se ocupa consigo mesmo, um ensino errôneo, um anseio secreto pelas coisas deste mundo, alguma reserva no coração em se aceitar as reivindicações de Deus, de Cristo e da eternidade. Mas qualquer que possa ser a causa que esteja produzindo isso, cremos que, na maioria dos casos, se descobrirá que a falta de uma paz bem alicerçada, um problema tão comum entre o povo do Senhor, é o resultado de não se enxergar, de não se crer, naquilo que Deus fez o Seu Cristo ser para eles e por eles, e isso para todo o sempre.

Assim, o que propomos neste artigo é mostrar ao leitor ansioso, buscando nas preciosas páginas da Palavra de Deus, que em Cristo se encontra entesourado para ele tudo o que possa vir a necessitar, seja para atender às necessidades de sua própria consciência, aos ardentes desejos de seu coração, ou às exigências de seu caminho. Buscaremos provar, pela graça de Deus, que a obra de Cristo é o único lugar de repouso verdadeiro para a consciência; que Sua Pessoa é o único objeto para o coração; e que Sua Palavra é o único guia verdadeiro para o caminho.

E para começar, vamos nos deter um pouco na obra de Cristo como o único lugar de descanso para a consciência.

Ao considerarmos este importante assunto, há duas coisas que exigem nossa atenção: primeiro, o que Cristo fez por nós; segundo, o que Ele está fazendo para nós. Na primeira, temos a expiação; na última, a intercessão como Advogado. Ele morreu na cruz por nós: Ele vive para nós assentado no trono. Por Sua preciosa morte expiatória Ele supriu plenamente tudo o que dizia respeito à nossa condição como pecadores. Ele carregou nossos pecados, e os levou para todo o sempre. Ele levou a culpa por todos os nossos pecados – os pecados de todos os que creem no Seu nome. Jeová lançou sobre Ele todas as nossas iniquidades (Isaías 53). “Porque também Cristo padeceu uma vez pelos pecados, o Justo pelos injustos, para levar-nos a Deus” (1 Pedro 3.18).

Esta é uma verdade imensa, e de total importância para a alma ansiosa – uma verdade que se assenta no próprio alicerce de toda a posição cristã. É impossível que qualquer alma despertada, que qualquer consciência espiritualmente esclarecida, possa desfrutar da paz divinamente estabelecida até que esta tão preciosa verdade seja recebida em simplicidade de fé. Devo saber, com base na autoridade divina, que todos os meus pecados foram tirados da vista de Deus para sempre; que Ele próprio Se desfez deles de um modo que viesse a satisfazer todas as exigências do Seu trono e todos os atributos da Sua natureza; que Ele glorificou a Si próprio por lançar fora os meus pecados, e isto numa maneira muito mais tremenda e maravilhosa do que se tivesse me mandado para um inferno eterno por causa deles.

Sim, foi Ele mesmo Quem o fez. É esta a essência e o cerne – o âmago de toda a questão. Deus colocou os nossos pecados sobre Jesus, e Ele nos diz isto em Sua santa Palavra, a fim de podermos saber disso com base na autoridade divina – uma autoridade que não pode mentir. Deus planejou assim; Deus fez assim; e assim Deus o diz. Tudo vem de Deus, do princípio ao fim, e nós tão somente temos que descansar nisso como uma criança. Como sei que Jesus levou meus pecados em seu próprio corpo sobre o madeiro? Pela mesma autoridade que me diz que eu tinha pecados para serem levados. Deus, em Seu maravilhoso e inigualável amor, me assegura, a mim, um pobre e culpado pecador, merecedor do inferno, que Ele próprio cuidou da questão toda dos meus pecados, e Se livrou deles de um modo tal que veio a trazer uma rica colheita de glória para o Seu eterno Nome, por todo o universo, na presença de toda a inteligência criada. É nisto que a fé viva deve tranquilizar a consciência. Se Deus satisfez a Si próprio com a solução para os meus pecados, devo ficar igualmente satisfeito. Sei que sou um pecador – pode até ser que seja o principal dos pecadores. Sei que meus pecados são em maior número do que os cabelos da minha cabeça; que são negros como a meia-noite – negros como o próprio inferno. Sei que qualquer um desses pecados, o menos importante deles, merece as chamas eternas do inferno. Sei – porque a Palavra de Deus me diz – que uma simples partícula de pecado não pode jamais entrar em Sua santa presença; e que, por conseguinte, não havia para mim outro destino senão a eterna separação de Deus. Tudo isso eu sei, com base na clara e inquestionável autoridade daquela Palavra que está para sempre firmada no céu.

Mas, oh, o profundo mistério da cruz! – o glorioso mistério do amor redentor! Vejo o próprio Deus levando todos os meus pecados – pecados da pior espécie – todos os meus pecados, do modo como Ele os viu e avaliou. Eu O vejo colocando-os todos sobre a cabeça de meu bendito Substituto, e tratando com Ele ali por causa dos pecados. Vejo todas as ondas e vagas da justa ira de Deus – Sua ira contra os meus pecados – Sua ira que deveria ter queimado a mim, alma e corpo, no inferno, por toda uma terrível eternidade; eu as vejo rolando sobre o Homem que ficou em meu lugar, que me representou diante de Deus, que suportou tudo o que eu merecia, com Quem um Deus santo tratou como se tivesse tratado comigo. Vejo a imparcialidade de um Juiz, a santidade, verdade e justiça tratando com meus pecados, e livrando-se deles eternamente. Não deixando escapar nenhum deles por tratar! Sem conivência, sem paliativos, sem distinção, sem indiferença. Coisas como estas não poderiam mesmo se fazer presentes já que o próprio Deus tomou o caso em Suas mãos. Sua glória estava em jogo; Sua imaculada santidade, Sua eterna majestade, as sublimes reivindicações de Seu governo.

Tudo isso tinha que ser satisfeito numa medida tal que O glorificasse diante de anjos, homens e demônios. Ele podia ter me mandado para o inferno – com justiça; podia justamente me mandar para o inferno – por causa dos meus pecados. Eu não merecia nada mais do que isto. Todo o meu ser moral, desde o mais profundo, merecia isto – e deveria recebê-lo. Não tenho uma palavra sequer a dizer como desculpa para um simples pensamento pecaminoso, isso para não falar de uma vida manchada pelo pecado, do princípio ao fim – sim, uma vida de rebelião e de arrogante e deliberado pecado.

Outros podem argumentar como quiserem acerca da injustiça de uma eternidade de punição para uma vida de pecado – a completa falta de proporção que há entre alguns anos de práticas más e infindáveis eras de tormento no lago de fogo. Podem argumentar, mas creio plenamente, e confesso sem reservas, que por um simples pecado contra um Ser tal como é o Deus que vejo na cruz, eu mais que merecia a punição eterna no profundo, escuro e sombrio abismo do inferno.

Não estou escrevendo como um teólogo; se fosse um, seria realmente uma tarefa bem simples adornar isto com uma inegável lista de evidências das Escrituras a fim de provar a solene verdade da punição eterna. Mas não; estou escrevendo como alguém que foi divinamente instruído do verdadeiro deserto que é o pecado, e este deserto eu, calma, deliberada e solenemente declaro, é, e só pode ser nada menos do que a eterna exclusão da presença de Deus e do Cordeiro – tormento eterno no lago que arde com fogo e enxofre.

Porém – e eternas aleluias sejam ao Deus de toda a graça! – ao invés de nos mandar para o inferno por causa de nossos pecados, Ele enviou o Seu Filho para ser a propiciação por esses mesmos pecados. E no desdobramento do maravilhoso plano da redenção, vemos um Deus santo tratando com a questão dos nossos pecados, e executando juízo sobre eles na Pessoa de Seu tão amado, eterno e co-igual Filho, a fim de que o pleno manancial do Seu amor pudesse fluir em nossos corações. “Nisto está o amor, não em que nós tenhamos amado a Deus, mas em que Ele nos amou a nós, e enviou Seu Filho para propiciação pelos nossos pecados” (1 João 4.10).

Portanto, isto deve trazer paz à consciência, se tão somente for recebido com simplicidade de fé. Como é possível que uma pessoa creia que Deus satisfez a Si mesmo quanto aos pecados dela, e ao mesmo tempo ela própria não ter paz? Se Deus nos diz: “Nunca mais Me lembrarei dos seus pecados

(Jeremias 31.34), o que mais poderíamos desejar como fundamento de paz para nossa consciência? Se Deus me assegura que todos os meus pecados estão invisíveis como que em denso nevoeiro – que foram lançados para trás de Si – tendo saído para sempre de diante de Seus olhos, por que é que eu não teria paz? Se Ele me mostra o Homem que carregou meus pecados sobre a cruz, agora coroado à destra da Majestade nas alturas, porventura minha alma não deveria entrar no perfeito descanso no que diz respeito à questão de meus pecados? Com toda a certeza.

Pois, permita-me perguntar, como foi que Cristo chegou ao lugar que Ele agora ocupa no trono de Deus? Será que foi como Deus sobre tudo, bendito para sempre? Não; Ele sempre o foi – sempre esteve no seio do Pai – sempre foi o objeto do prazer eterno e inefável do Pai. Será que foi como um Homem perfeito, santo e sem mancha alguma – alguém cuja natureza seria absolutamente pura, perfeitamente livre de pecado? Não; pois nesse caráter, e nessa posição, Ele poderia ter, a qualquer momento, da manjedoura à cruz, exigido um lugar à destra de Deus. Como foi então? Eterno louvor seja ao Deus de toda a graça! Foi como Aquele que, por Sua morte, cumpriu a gloriosa obra da redenção – Aquele que foi carregado com todo o peso dos nossos pecados – Aquele que satisfez perfeitamente todas as justas reivindicações daquele trono no qual Ele agora Se assenta. Este é um ponto de cardeal importância para o leitor angustiado se agarrar. E não falhará em emancipar o coração e tranquilizar a consciência. Não é possível que tenhamos, por fé, o Homem que foi pregado no madeiro, e está agora coroado no trono, e não tenhamos paz com Deus. Após o Senhor Jesus Cristo ter tomado sobre Si os nossos pecados, e o juízo que a eles era devido, Ele não poderia estar onde agora está se um só daqueles pecados tivesse ficado por expiar. Ver Aquele que carregou os pecados coroado de glória é ver nossos pecados tirados para sempre de diante da divina presença. Onde estão nossos pecados? Estão todos apagados. Como sabemos disso? Aquele que os levou sobre Si atravessou os céus e chegou ao mais alto pináculo de glória. A justiça eterna coroou Sua bendita cabeça com um diadema de glória, como o Consumador de nossa redenção – o Carregador de nossos pecados; provando assim, acima de qualquer dúvida, ou acima de qualquer possibilidade de se questionar, que nossos pecados foram todos tirados da vista de Deus para sempre. Um Cristo coroado e uma consciência limpa estão, na bendita dispensação da graça, inseparavelmente ligados. Tremendo fato! Bem podemos cantar, com todas as nossas forças remidas, os louvores do amor redentor.

Mas vejamos como esta verdade tão consoladora nos é apresentada nas Sagradas Escrituras. Em Romanos 3 lemos: “Mas agora se manifestou sem a lei a justiça de Deus, tendo o testemunho da lei e dos profetas; isto é, a justiça de Deus pela fé em Jesus Cristo para todos e sobre todos os que creem; porque não há diferença. Porque todos pecaram e destituídos estão da glória de Deus; sendo justificados gratuitamente pela Sua graça, pela redenção que há em Cristo Jesus, ao qual Deus propôs para propiciação pela fé no Seu sangue, para demonstrar a Sua justiça pela remissão dos pecados dantes cometidos, sob a paciência de Deus; para demonstração da Sua justiça neste tempo presente, para que Ele seja Justo e justificador daquele que tem fé em Jesus” (Romanos 3.21-26).

Outra vez, no capítulo 4, falando da fé de Abraão lhe sendo imputada como justiça, o apóstolo acrescenta, “Ora, não só por causa dele está escrito, que lhe fosse tomado em conta, mas também por nós, a quem será tomado em conta, os que cremos naquele que dentre os mortos ressuscitou a Jesus nosso Senhor; O qual por nossos pecados foi entregue, e ressuscitou para nossa justificação” (Romanos 4.23-25). Temos Deus aqui apresentado à nossa alma como Aquele que ressuscitou de entre os mortos ao Carregador de nossos pecados. E por que o fez? Porque Aquele que foi entregue por causa das nossas ofensas O havia glorificado perfeitamente no que dizia respeito àquelas ofensas, e as havia levado para sempre. Deus não apenas enviou o Seu Filho Unigênito ao mundo, mas moeu-O por causa das nossas iniquidades, e ressuscitou-O de entre os mortos, a fim de que pudéssemos saber e crer que nossas iniquidades foram todas tratadas de uma maneira que glorificou a Deus, infinita e eternamente. Ao Seu nome seja dada eterna e universal honra!

Mas temos um testemunho ainda mais extenso desta grande verdade fundamental. Em Hebreus 1 lemos palavras que mexem com nossa alma, como estas: “Havendo Deus antigamente falado muitas vezes, e de muitas maneiras, aos pais, pelos profetas, a nós falou-nos nestes últimos dias pelo Filho, a Quem constituiu herdeiro de tudo, por Quem fez também o mundo. O qual, sendo o resplendor da Sua glória, e a expressa imagem da Sua Pessoa, e sustentando todas as coisas pela palavra do Seu poder, havendo feito por Si mesmo a purificação dos nossos pecados, assentou-Se à destra da Majestade nas alturas” (Hebreus 1.1-3). Nosso Senhor Jesus Cristo – bendito seja o Seu nome!

– não tomaria o Seu lugar no trono de Deus até que tivesse, pela oferta de Si mesmo na cruz, purificado nossos pecados. Portanto, um Cristo ressurreto à destra de Deus é uma prova gloriosa e inquestionável de que nossos pecados todos já se foram, pois Ele não poderia estar onde agora está, se restasse um só daqueles pecados. Deus ressuscitou de entre os mortos, Aquele mesmíssimo Homem sobre o qual Ele mesmo havia posto todo o peso dos nossos pecados. Portanto, tudo está resolvido – divina e eternamente resolvido. É tão impossível que um só pecado possa ser achado no mais fraco crente em Jesus, quanto no próprio Jesus. Isto é algo extraordinário de se afirmar, mas trata-se da sólida verdade de Deus, estabelecida em diversos lugares das Sagradas Escrituras, e a alma que crê nisto deve possuir uma paz que o mundo não pode dar e nem tirar.

Segunda Parte – A completa libertação do atual poder do pecado

Até aqui temos nos ocupado com aquele aspecto da obra de Cristo que trata da questão do perdão dos pecados, e cremos sinceramente que o leitor deve estar já bem esclarecido e firmado neste importante ponto. Certamente é seu feliz privilégio estar assim, se tão somente receber o que Deus afirma em Sua Palavra. “Porque também Cristo padeceu uma vez pelos pecados, o Justo pelos injustos, para levar-nos a Deus” (1 Pedro 3.18).

Se, portanto, Cristo sofreu por nossos pecados, acaso não deveríamos conhecer a profunda bênção que é estarmos eternamente libertos do fardo desses pecados? Poderia, porventura, estar de acordo com a vontade e com o coração de Deus que alguém por quem Cristo sofreu devesse continuar em perpétua escravidão, preso e ligado com a corrente de seus pecados, e clamando, semana após semana, mês após mês, e ano após ano, que o fardo de seus pecados é intolerável?

Se uma condição assim for verdadeira e apropriada para o cristão, então o que foi que Cristo fez por nós? Seria possível que Cristo tivesse levado nossos pecados e ainda estivéssemos atados e presos pelas correntes deles? Será verdade que Ele tenha carregado o pesado fardo de nossos pecados e ainda assim tenhamos ficado agora esmagados sob esse mesmo peso intolerável?

Alguém poderia querer nos persuadir de que não é possível sabermos que nossos pecados estão perdoados – que devemos seguir até o fim de nossa vida em um estado de completa incerteza sobre este assunto de importância tão vital. Se for assim, o que dizer do precioso evangelho da graça de Deus – das boas novas de salvação? Do ponto de vista de um ensino tão miserável, que significado teriam aquelas ardorosas palavras do bendito apóstolo Paulo na sinagoga de Antioquia? – “Seja-vos, pois, notório, homens irmãos, que por Este se vos anuncia a remissão dos pecados. E de tudo o que, pela lei de Moisés, não pudestes ser justificados, por Ele é justificado todo aquele que crê” (Atos 13.38,39).

Se estivéssemos fundamentados na lei de Moisés, em nossa observância dos mandamentos, em nosso cumprimento do dever, em nosso sentimento em como deveríamos agir, em nossa avaliação de Cristo e em nosso amor por Deus, o raciocínio lógico seria que certamente estaríamos em dúvidas e obscura incerteza, visto que não poderíamos ter nenhuma base possível de certeza. Se a nós coubesse fazer algo, ainda que fosse o movimento de uma pálpebra, então, verdadeiramente, seria uma enorme presunção de nossa parte pensar em ter certeza.

Mas se, por outro lado, escutamos a voz do Deus vivo, que não pode mentir, proclamando em nossos ouvidos as boas novas de que por intermédio de Seu amado Filho, que morreu na cruz, foi sepultado, ressuscitou de entre os mortos, e está assentado na glória – que por meio dele somente – por meio dele, sem qualquer coisa vinda de nós – por meio da única oferta de Si mesmo de uma vez para sempre, é pregada a completa e eterna remissão dos pecados, como uma realidade presente, para ser desfrutada agora por cada alma que simplesmente crê no precioso registro de Deus, como poderia ser possível para quem quer que fosse continuar em dúvida e incerteza? A obra de Cristo foi consumada? Ele disse que sim. O que foi que Ele fez? Ele levou os nossos pecados. Terão eles sido, então, levados, ou estarão ainda sobre nós? – quais deles?

Leitor, diga-me quais deles! Onde estão os seus pecados? Estão eles invisíveis como em denso nevoeiro, ou estão ainda, como um grande peso de culpa, em todo o seu poder condenador, colocados sobre a sua consciência? Se eles não foram levados pela morte expiatória de Cristo, jamais serão levados; se Ele não os levou sobre a cruz, você terá que levá-los nas atormentadoras chamas do inferno, para sempre, e sempre, e sempre. Sim; fique ciente disto, pois não há outro modo de se livrar dessa grande e solene questão. Se Cristo não resolveu o assunto na cruz, você deve resolvê-lo no inferno. Assim deve ser, se a Palavra de Deus for verdade.

Mas, glória seja dada a Deus, o testemunho que Ele dá nos assegura que Cristo já sofreu pelos pecados, o Justo pelo injusto, para levar-nos a Deus; não meramente levar-nos para o céu quando morrermos, mas levar-nos a Deus agora. E como é que Ele nos leva a Deus agora? Acaso é estando nós presos e ligados com a corrente de nossos pecados? Com um intolerável peso de culpa sobre nossa alma? Não, de modo algum. Ele nos leva para Deus sem mancha ou mácula ou qualquer acusação que seja. Ele nos leva a Deus em toda a Sua própria aceitabilidade. Acaso há qualquer culpa sobre Ele? Não. Havia, bendito seja o Seu nome, quando Ele permaneceu em nosso lugar, mas ela já se foi – para sempre – lançada como um peso de chumbo nas insondáveis águas do divino esquecimento. Ele foi carregado com nossos pecados sobre a cruz. Deus colocou sobre Ele todas as nossas iniquidades, e tratou com Ele ali por causa delas. A questão toda de nossos pecados, conforme a estimativa que Deus tinha disso, foi abordada em sua totalidade e de modo definitivo, pois foi divinamente abordada, resolvida entre Deus e Cristo, em meio às horrendas trevas do Calvário. Sim, tudo foi resolvido ali, de uma vez para sempre.

Como sabemos disso? Pela autoridade do único Deus verdadeiro. Sua Palavra nos assegura que temos redenção por intermédio do sangue de Cristo, a remissão dos pecados, em conformidade com as riquezas da Sua graça. Ele nos declara, em notas da mais doce, rica e profunda misericórdia, que de nossos pecados e iniquidades nunca mais Se lembrará. Será que isto não é suficiente? Será que devíamos continuar clamando que estamos presos e ligados com a corrente de nossos pecados? Será que devíamos manchar assim a obra perfeita de Cristo? Será que devíamos tornar opaco o brilho da graça divina, e tomar como mentira o testemunho do Espírito Santo nas Escrituras da Verdade? Longe de nós tal pensamento! De modo nenhum. Ao invés disso, saudemos com ações de graças o bendito benefício que tão graciosamente nos foi outorgado pelo amor divino, através do precioso sangue de Cristo.

O gozo do coração de Deus está em perdoar nossos pecados. Sim, Deus agrada-Se em perdoar a iniquidade e a transgressão. É algo gratificante para Ele, e que O glorifica, derramar dentro do coração quebrantado e contrito o precioso bálsamo de Sua misericórdia e Seu amor perdoador. Ele não poupou Seu próprio Filho, mas O entregou, e O moeu no madeiro maldito, a fim de poder deixar fluir, em perfeita justiça, o rico manancial de graça que brota do Seu imenso e bondoso coração, em direção ao pobre, culpado, arruinado pecador, esmagado sob o peso de sua consciência.

Mas se o leitor ainda assim se sentisse disposto a inquirir acerca de como pode obter a certeza de que essa bendita remissão dos pecados – deste fruto da obra expiatória de Cristo – aplica-se a ele, que escute estas magnificentes palavras que saíram dos lábios do Salvador ressuscitado quando comissionava os primeiros arautos de Sua graça: “E disse-lhes: Assim está escrito, e assim convinha que o Cristo padecesse, e ao terceiro dia ressuscitasse dentre os mortos, e em Seu nome se pregasse o arrependimento e a remissão dos pecados, em todas as nações, começando por Jerusalém” (Lucas 24.46,47).

Temos aqui a grande e gloriosa comissão – sua base, sua autoridade, sua esfera. Cristo sofreu. É esta a base meritória da remissão dos pecados. Sem derramamento de sangue não há remissão de pecados; mas pelo derramamento de sangue, e pelo derramamento de sangue somente, há remissão de pecados – uma remissão tão plena e completa quanto o precioso sangue de Cristo é capaz de efetuar.

Mas onde está a autoridade? “Está escrito.” Bendita e indisputável autoridade! Nada jamais a poderá abalar. Sei, com base na autoridade sólida da Palavra de Deus, que meus pecados foram todos perdoados, todos tirados de vista, todos levados para sempre, todos lançados para trás de Deus, de modo que nunca, em hipótese alguma, poderão levantar-se outra vez contra mim.

Finalmente, quanto ao que diz respeito à esfera. É para “todas as nações”. Isto, sem dúvida, inclui também a mim. Não há nenhum tipo de exceção, condição ou qualificação. As benditas boas novas deveriam ser levadas, sobre as asas do amor, a todas as nações – a todo o mundo – a toda criatura sob o céu. Como poderia eu excluir a mim mesmo de uma comissão de tão amplo alcance? Será que por algum momento duvidaria de que os raios do sol que Deus criou sejam para mim? Certamente que não. E por que iria eu questionar o precioso fato de que a remissão dos pecados é para mim? Nem por um instante sequer. É para mim tão certo como se eu fosse o único pecador sob a abóbada celeste de Deus. A universalidade disso impede qualquer dúvida quanto a ser ou não designada para mim.

E certamente, se precisamos ainda de mais encorajamento, encontraremos no fato de que os benditos embaixadores deviam começar a partir de Jerusalém – o lugar mais culpado sobre a face da Terra. Deviam oferecer a primeira oferta de perdão aos próprios homicidas do Filho de Deus. E é isto o que o apóstolo Pedro faz naquelas palavras de tão maravilhosa e transcendente graça: “Primeiro O enviou a vós, para que nisso vos abençoasse, no apartar, a cada um de vós, das vossas maldades” (Atos 3.26).

Não é possível conceber algo mais rico ou abundante ou magnificente do que isto. A graça que poderia alcançar os homicidas do Filho de Deus pode alcançar qualquer um: o sangue que poderia limpar a culpa de um crime assim pode limpar o mais vil pecador fora dos limites do inferno.

Será que você pode ainda hesitar quanto ao perdão de seus pecados? Cristo sofreu pelos pecados. Deus prega a remissão dos pecados. Ele garante isto em Sua própria Palavra. “A Este dão testemunho todos os profetas, de que todos os que nele creem receberão o perdão dos pecados pelo Seu nome” (Atos 10.43). O que mais você poderia ter? Como é que pode continuar duvidando; como é que pode continuar esperando? E o que está esperando? Você já tem a obra consumada de Cristo e a fiel Palavra de Deus. Isto, com toda certeza, deveria satisfazer seu coração e tranquilizar sua consciência. Permita-nos, então, insistir para que aceite a plena e eterna remissão de todos os seus pecados. Receba em seu coração as doces novas de divino amor e misericórdia, e siga seu caminho jubiloso. Escute a voz de um Salvador ressurreto, falando do trono da Majestade nas alturas, e assegurando a você que seus pecados estão todos perdoados. Deixe que as tranquilizadoras palavras, saídas da própria boca de Deus, penetrem, com seu emancipador poder, em seu espírito atribulado: “Nunca mais Me lembrarei dos seus pecados” (Jeremias 31.34). Se Deus me fala assim, se Ele me assegura que não Se lembrará mais de meus pecados, não deveria eu estar plena e eternamente satisfeito? Por que deveria seguir adiante duvidando e questionando, quando Deus já falou? O que mais pode dar certeza, se não a Palavra de Deus que é viva e permanece para sempre? Ela é a única base de certeza; e nenhum poder na Terra ou no inferno – humano ou diabólico – pode jamais abalá-la. A obra consumada de Cristo e a fiel Palavra de Deus são a base e a autoridade do pleno perdão de pecados.

Mas, bendito para sempre seja o Deus de toda a graça, não é apenas a remissão de pecados que nos é anunciada através da morte expiatória de Cristo. Só isto já seria um benefício e uma bênção da mais elevada ordem; e, como já vimos, desfrutamos disso em conformidade com a amplitude do coração de Deus, e em conformidade com o valor e a eficácia da morte de Cristo, na estima que Deus tem dela. Mas além da plena e perfeita remissão de pecados, temos também completa libertação do presente poder do pecado. Este é um grande assunto para todo verdadeiro amante de santidade. Em conformidade com a gloriosa dispensação da graça, a mesma obra que assegura a completa remissão dos pecados rompeu para sempre o poder do pecado. Não se trata apenas de terem sido apagados os pecados da vida, mas o pecado da natureza está condenado. O crente tem o privilégio de considerar-se como morto para o pecado. Ele pode cantar, com um coração grato, Por mim, oh, Senhor, aqui já morreste, E eu bem o sei, que em Ti morri assim; Bem vivo estás, a morte venceste, Agora Senhor Tu vives sempre em mim.

A face do Pai, de graça a irradiar, Já brilha pra mim, a me iluminar.

Esta é a aspiração apropriada a um cristão. “Já estou crucificado com Cristo; e vivo, não mais eu, mas Cristo vive em mim” (Gálatas 2.20). Isto é cristianismo. O velho “eu” crucificado, e Cristo vivendo em mim. O cristão é uma nova criação. As coisas velhas já passaram. A morte de Cristo encerrou para sempre a história do velho “eu”; e, portanto, embora o pecado habite ainda no crente, seu poder está rompido e eliminado para sempre. Não somente a culpa que ele levava está cancelada, mas seu terrível domínio foi totalmente destruído.

É esta a gloriosa doutrina dos capítulos 6 ao 8 de Romanos. O estudante atento desta tão magnificente epístola irá observar que a partir do capítulo 3.21, até o capítulo 5.11 temos a obra de Cristo aplicada à questão dos pecados; e do capítulo 5.12 até o final do capítulo 8 temos outro aspecto da obra de Cristo, ou seja, sua aplicação à questão do pecado – “nosso homem velho” – “o corpo do pecado” – “pecado na carne”. Não há, nas Escrituras, algo como perdão de pecado. Deus condenou o pecado; Deus não o perdoou – uma distinção que é imensamente importante. Deus demonstrou Sua eterna aversão ao pecado na cruz de Cristo. Ele expressou e executou Seu juízo sobre o pecado, e agora o crente pode se enxergar como ligado e identificado com Aquele que morreu na cruz e que está ressurreto dentre os mortos. Ele saiu da esfera do domínio do pecado e entrou naquela esfera nova e bendita onde a graça reina pela justiça.

Mas graças a Deus”, diz o apóstolo, “que, tendo sido servos do pecado (antes, mas não mais agora), obedecestes de coração à forma de doutrina a que fostes entregues. E, libertados do pecado, (não meramente tendo os pecados perdoados), fostes feitos servos da justiça. Falo como homem, pela fraqueza da vossa carne; pois que, assim como apresentastes os vossos membros para servirem à imundícia, e à maldade para maldade, assim apresentai agora os vossos membros para servirem à justiça para santificação. Porque, quando éreis servos do pecado, estáveis livres da justiça. E que fruto tínheis então das coisas de que agora vos envergonhais? Porque o fim delas é a morte. Mas agora, libertados do pecado, e feitos servos de Deus, tendes o vosso fruto para santificação, e por fim a vida eterna” (Romanos 6.17-22).

Aqui está o precioso segredo de uma vida santa. Estamos mortos para o pecado; vivos para Deus. O reino do pecado terminou. O que é que o pecado tem a ver com um homem morto? Nada. Bem, então, o crente morreu com Cristo; está sepultado com Cristo; está ressuscitado com Cristo, para andar em novidade de vida. Ele vive sob o precioso reino da graça, e tem seu fruto para santidade. O homem que faz uso da abundante graça divina como desculpa para viver em pecado nega o próprio fundamento do cristianismo. “Nós, que estamos mortos para o pecado, como viveremos ainda nele?” (Romanos 6.2). Impossível. Seria uma negação de toda a posição cristã. Imaginar o cristão como alguém que deve seguir, dia após dia, semana após semana, mês após mês, e ano após ano, pecando e arrependendo-se, pecando e arrependendo-se, é degradar o cristianismo e falsificar a posição cristã como um todo. Dizer que um cristão deve seguir pecando porque ele tem a carne em si é ignorar a morte de Cristo em um de seus grandes aspectos, e reputar como mentira todo o ensino dos apóstolos em Romanos capítulos 6 a 8.

Graças a Deus, não existe razão por que o crente deva cometer pecado. “Meus filhinhos, estas coisas vos escrevo, para que não pequeis” (1 João 2.1). Não deveríamos nos justificar nem mesmo no mais simples pensamento pecaminoso. Trata-se de nosso doce privilégio andar na luz, como Deus está na luz; e com toda a certeza, quando estamos andando na luz, não estamos cometendo pecado. Oh! Saímos da luz e cometemos pecado; mas a ideia normal, verdadeira e divina de um cristão é a de alguém andando na luz, e não cometendo pecado. Um pensamento pecaminoso é estranho ao verdadeiro caráter do cristianismo. Temos pecado em nós, e devemos continuar tendo enquanto estivermos no corpo; mas se andamos no Espírito, o pecado em nossa natureza não irá se manifestar na vida. Dizer que não precisamos pecar é a afirmação de um privilégio cristão; dizer que não podemos pecar é um engano e ilusão.

Terceira Parte – O presente ofício de Cristo por nós

Daquilo com que já nos ocupamos, aprendemos que o grande resultado da obra de Cristo no passado é o de nos conceder uma posição divinamente perfeita diante de Deus. “Porque com uma só oblação aperfeiçoou para sempre os que são santificados

(Hebreus 10.14). Ele nos introduziu na Divina Presença, em toda a Sua perfeita aceitabilidade, na credibilidade e virtude do Seu nome, Sua Pessoa e Sua obra; de modo que, como declara o apóstolo João, “qual Ele é, somos nós também neste mundo” (1 João 4.17).

Tal é a firme posição da mais débil ovelha de todo o rebanho de Cristo, comprado com Seu sangue. E nem poderia ser diferente. Ou é isso, ou é eterna perdição. Não há espaço nem para um fio de cabelo, entre esta posição de absoluta perfeição diante de Deus, e uma condição de culpa e ruína. Ou estamos em nossos pecados, ou em um Cristo ressurreto. Não há meio termo. Ou estamos cobertos de culpa ou completos em Cristo. Mas o crente é declarado, pela autoridade que tem a voz do Espírito Santo nas Escrituras, como alguém que está completo em Cristo – perfeito, quanto à sua consciência – aperfeiçoado perpetuamente – limpo de toda mancha – agradável no Amado – feito justiça de Deus em Cristo.

Tudo isso por intermédio do sacrifício da cruz. Aquela preciosa morte expiatória de Cristo forma o fundamento sólido e irrefutável da posição cristã.

Mas Este, havendo oferecido para sempre um único sacrifício pelos pecados, está assentado à destra de Deus” (Hebreus 10.12). Um Cristo assentado é a gloriosa prova e a perfeita definição do lugar do crente na presença de Deus. Nosso Senhor Jesus Cristo, havendo glorificado a Deus acerca de nossos pecados, e tendo suportado Seu juízo contra tudo aquilo que a nossa condição como pecadores exigia, havendo oferecido um único sacrifício pelos pecados, assentou-Se para sempre em um lugar que não é só de perdão, aceitação e paz, mas de total libertação do domínio do pecado – um lugar de vitória assegurada sobre tudo o que possivelmente poderia ser contra nós, seja o pecado que habita em nós, o medo de Satanás, a lei ou este presente mundo mau.

Esta é, repetimos, a posição absolutamente firme que o crente ocupa, se é que nos sujeitamos a aprender das Sagradas Escrituras. E rogamos insistentemente para que o leitor cristão não se satisfaça com nada menos do que isto. Não continue a aceitar os confusos credos da cristandade, com seus serviços litúrgicos, os quais apenas levam as almas de volta às trevas, à distância de Deus e ao jugo do judaísmo – esse sistema no qual Deus encontrou falta, e que aboliu para sempre por não estar em conformidade com Sua santa vontade, ou por não satisfazer Seu bondoso coração que concede ao adorador perfeita paz, perfeita liberdade, perfeita proximidade Consigo, para todo o sempre.

Nós solenemente nos dirigimos a todo o povo do Senhor, espalhado pelos vários segmentos da Igreja professa, para que considerem onde se encontram, e para que analisem até onde estão compreendendo e desfrutando da verdadeira posição cristã, conforme nos é apresentada nas diversas passagens das Escrituras que já citamos, as quais podem ser ainda facilmente multiplicadas uma centena de vezes. Comparem, fiel e diligentemente, o ensino da cristandade com a Palavra de Deus, e vejam o quanto se distanciam. Fazendo assim, descobrirão de que modo o cristianismo professo de nossos dias forma um contraste com os ensinamentos vivos do Novo Testamento; e uma das consequências é que as almas são privadas dos preciosos privilégios que a elas pertencem como cristãs, e são mantidas naquela distância moral que caracterizou a economia mosaica.

Tudo isso é por demais deplorável. Entristece o Espírito Santo, fere o coração de Cristo, desonra a graça de Deus, e contradiz as mais claras afirmações das Sagradas Escrituras. Estamos por demais persuadidos de que a condição de milhares de almas preciosas neste exato momento é suficiente para fazer sangrar o coração; e tudo isso se deve, em grande parte, aos ensinos da cristandade com seus credos e fórmulas. Onde é que você irá encontrar, em meio às fileiras comuns à profissão cristã, uma pessoa desfrutando de uma consciência perfeitamente purificada; uma consciência de paz com Deus, produzida pelo Espírito de adoção? Acaso não é verdade que as pessoas são ensinadas pública e sistematicamente, que se trata de uma atitude presunçosa alguém dizer que seus pecados estão todos perdoados – que está selado com o Espírito Santo – que não pode mais se perder, pois está verdadeiramente unido a Cristo pelo Espírito que nele habita? Porventura não são todos estes privilégios cristãos praticamente negados e ignorados na cristandade? E acaso as pessoas não estão sendo ensinadas que é perigoso ser muito confiante – que é moralmente mais seguro viver em dúvida e temor – que o máximo que podemos querer almejar é irmos para o céu após a morte? Onde é que as almas estão sendo ensinadas das gloriosas verdades ligadas à nova criação? Onde estão elas arraigadas e fundamentadas no conhecimento de sua posição em uma Cabeça ressuscitada e glorificada nos céus? Onde estão elas sendo introduzidas no gozo daquelas coisas que são graciosamente dadas por Deus ao Seu povo amado?

Oh, lamentamos ao pensar na única resposta verdadeira que pode ser dada a tais indagações. O rebanho de Cristo está espalhado pelas tenebrosas montanhas e desolados atracadouros. As almas do povo de Deus são abandonadas na enevoada distância que caracterizava o sistema judaico. Desconhecem o significado do véu rasgado, da proximidade de Deus, da consciente aceitação que desfrutam no Amado. A própria mesa do Senhor encontra-se encoberta com as negras e frias névoas da superstição, e cercada pelas repulsivas barreiras de um legalismo negro e deprimente. A redenção efetuada, a completa remissão de pecados, a perfeita justificação diante de Deus, a aceitação em um Cristo ressuscitado, o Espírito de adoção, a bendita e brilhante esperança da vinda do Noivo – todas estas realidades gloriosas – estes patentes privilégios da Igreja de Deus são, na prática, postos de lado pela máquina religiosa da cristandade e pelo seu ensino.

Alguns, talvez, poderão pensar que pintamos um quadro muito obscuro. Podemos apenas dizer – e o dizemos com toda a sinceridade – que quisera Deus fosse só isso! Tememos que este quadro esteja ainda longe da realidade – sim, a realidade é muito mais horrenda do que a pintamos. Estamos profunda e dolorosamente espantados com o fato de que a condição, não apenas da Igreja professa, mas de milhares de verdadeiras ovelhas do rebanho de Cristo, é tal que se a enxergássemos do modo como Deus a enxerga, isso partiria nosso coração.

Todavia, devemos continuar com nosso assunto e, fazendo assim, apresentar o melhor remédio que já poderia ter sido receitado para a deplorável condição de tantos dentre o povo do Senhor.

Falamos da preciosa obra que nosso Senhor Jesus Cristo consumou por nós, levando nossos pecados, e condenando o pecado, nos assegurando a perfeita remissão dos primeiros e a total libertação do último, como poder dominador que era. O cristão é aquele que não está apenas perdoado, mas liberto. Cristo morreu pelo cristão, e este morreu em Cristo. Portanto, encontra-se livre, como alguém que ressuscitou de entre os mortos e está vivo para Deus, por Jesus Cristo nosso Senhor. O cristão é agora uma nova criatura. Passou da morte para a vida. A morte e o juízo ficaram para trás e nada, além da glória, é o que se encontra diante dele. Ele possui agora uma posição imaculada e um futuro sem nuvens.

Ora, se tudo isso é verdade para cada filho de Deus – e as Escrituras garantem isso – o que mais desejamos? Nada, quanto ao que somos, nada quanto à posição que ocupamos, nem quanto à esperança que temos. Em tudo isso possuímos a mais perfeita e absoluta perfeição; todavia, nosso estado não é perfeito, nosso andar não é perfeito. Continuamos no corpo, cercados de inúmeras fraquezas, expostos a inúmeras tentações, aptos a tropeçar, a cair e a nos desviar. Por nós mesmos, somos incapazes de ter um único pensamento bom, ou de nos mantermos por um momento sequer na bendita posição onde a graça nos colocou. É verdade que temos vida eterna, e que estamos ligados à Cabeça viva no céu, pelo Espírito Santo que foi enviado à Terra, de modo que estamos eternamente seguros. Nada poderá jamais tocar nossa vida, ainda mais se considerarmos que ela está “escondida com Cristo em Deus” (Colossenses 3.3).

Mas enquanto nada pode tocar nossa vida, ou interferir em nossa posição, ainda assim, considerando que nossa condição é imperfeita e que nosso andar é imperfeito, nossa comunhão é suscetível de ser interrompida, e é por esta razão que necessitamos do atual ofício de Cristo por nós.

Jesus vive à destra de Deus por nós. Sua ativa intervenção a nosso favor nunca cessa por um momento sequer. Ele atravessou os céus, em virtude da expiação consumada, e ali exerce continuamente Sua perfeita intercessão por nós diante de Deus. Ele está ali como nossa justiça permanente, a fim de nos manter sempre na divina integridade da posição e do relacionamento ao qual Sua morte expiatória nos introduziu. Por isso lemos em Romanos 5.10: “Porque se nós, sendo inimigos, fomos reconciliados com Deus pela morte de Seu Filho, muito mais, tendo sido já reconciliados, seremos salvos pela Sua vida”. Assim também, lemos em Hebreus 4.14-16: “Visto que temos um grande sumo sacerdote, Jesus, Filho de Deus, que penetrou nos céus, retenhamos firmemente a nossa confissão. Porque não temos um sumo sacerdote que não possa compadecer-se das nossas fraquezas; porém, um que, como nós, em tudo foi tentado, mas sem pecado. Cheguemos, pois, com confiança ao trono da graça, para que possamos alcançar misericórdia e achar graça, a fim de sermos ajudados em tempo oportuno”. E, mais uma vez, no capítulo 7.24,25: “Mas Este, porque permanece eternamente, tem um sacerdócio perpétuo. Portanto, pode também salvar perfeitamente os que por Ele se chegam a Deus, vivendo sempre para interceder por eles”. E no capítulo 9.24: “Porque Cristo não entrou num santuário feito por mãos, figura do verdadeiro, porém no mesmo céu, para agora comparecer por nós perante a face de Deus”.

Temos também, na primeira Epístola de João, o mesmo assunto apresentado sob um aspecto um pouco diferente: “Meus filhinhos, estas coisas vos escrevo, para que não pequeis; e, se alguém pecar, temos um Advogado para com o Pai, Jesus Cristo, o justo. E Ele é a propiciação pelos nossos pecados, e não somente pelos nossos, mas também pelos de todo o mundo” (1 João 2.1,2).

Quão precioso é tudo isso para o cristão sincero, que está sempre consciente – perfeita e dolorosamente consciente – de sua fraqueza, necessidade, debilidade e fracasso! Como é possível – podemos indagar justamente – que alguém que tenha seus olhos sobre estas passagens que acabamos de citar, sem mencionar sua consciência própria – o senso de imperfeição de sua própria condição e do seu andar possa colocar em dúvida a necessidade do cristão de um ininterrupto ministério de Cristo em seu favor? Não é espantoso que algum leitor da epístola aos Hebreus, algum observador da condição e do andar do crente mais fiel, pudesse ser achado negando a aplicação do sacerdócio e intercessão de Cristo pelos cristãos hoje?

Em favor de quem – permita-nos perguntar – está Cristo vivendo e atuando agora à destra de Deus? Será que é em favor do mundo? Certamente que não; pois Ele diz, em João 17.9, “Não rogo pelo mundo, mas por aqueles que Me deste, porque são Teus”. E quem são esses? Será que se trata do remanescente judeu? Não; esse remanescente ainda está para entrar em cena. Quem são eles, então? Crentes – filhos de Deus – cristãos, que estão agora passando por este mundo pecaminoso, sujeitos a falharem e a serem enganados a cada passo do caminho. São estes o objeto do ministério sacerdotal de Cristo. Ele morreu para os tornar limpos: Ele vive para mantê-los limpos. Por Sua morte Ele expiou a nossa culpa, e por Sua vida Ele nos limpa por meio da ação da Palavra pelo poder do Espírito Santo.

Este é Aquele que veio por água e sangue, isto é, Jesus Cristo; não só por água, mas por água e por sangue” (1 João 5.6). Temos expiação e somos limpos por meio de um Salvador crucificado. A dupla fonte emanou do lado ferido de Cristo, morto por nós. Todo louvor seja dado ao Seu nome!

Temos tudo, em virtude da preciosa morte de Cristo. O problema é nossa culpa? Ela foi cancelada pelo sangue da expiação. O problema está em nossas faltas diárias? Temos um Advogado para com o Pai – um grande Sumo Sacerdote para com Deus. “Se alguém pecar” (1 João 2.1). Ele não diz ‘se alguém se arrepender’. Não há dúvida de que há, e deve haver arrependimento e juízo-próprio; mas como é que são produzidos? Aqui está: “Temos um Advogado para com o Pai”. É a Sua sempre prevalecente intercessão que consegue, para aquele que peca, a graça do arrependimento, juízo-próprio e confissão.

É algo de extrema importância para o leitor cristão ter bem claro em seu entendimento o que se refere a esta verdade cardeal da intercessão advocatícia ou sacerdócio de Cristo. Costumamos erroneamente pensar que quando falhamos em nosso trabalho, precisamos fazer algo de nós mesmos para resolver a questão entre nossa alma e Deus. Nós nos esquecemos até do porquê de estarmos conscientes de nossa falha – antes de nossa consciência se tornar realmente ciente do fato, nosso bendito Advogado esteve diante do Pai para tratar disso; e é à Sua intercessão que devemos a graça de nosso arrependimento, confissão e restauração.

Se alguém pecar, temos…” – o que? O sangue ao qual devemos recorrer? Não; repare cuidadosamente o que o Espírito Santo declara. “Temos um Advogado para com o Pai, Jesus Cristo, o justo”. E por que Ele diz “o justo”? Por que não dizer, o bondoso, o misericordioso, ou o que se compadece de nós? Porventura Ele não é tudo isso? Certamente; mas nenhum desses atributos caberia aqui, ainda mais por estar, o bendito apóstolo, colocando diante de nós a consoladora verdade de que em todos os nossos erros, pecados e falhas, temos um representante “justo” diante do Deus justo, o Pai santo, de modo que nossas questões nunca terminem em fracasso. Ele vive sempre para fazer intercessão por nós, e porque Ele vive sempre, “pode também salvar perfeitamente” – salvar até o fim – “os que por Ele se chegam a Deus”.

Que firme consolo existe aqui para o povo de Deus! E quão necessário para nossas almas é estarmos fundamentados no conhecimento e compreensão disso! Há alguns que possuem uma compreensão imperfeita da verdadeira posição de um cristão, por não enxergarem o que Cristo fez por eles no passado; outros, pelo contrário, têm uma visão tão unilateral da condição do cristão que não enxergam nossa necessidade daquilo que Cristo está agora fazendo por nós. Ambos devem ser corrigidos. Os primeiros ignoram a extensão e o valor da expiação; os últimos ignoram o lugar e a aplicação que tem a intercessão advocatícia. A imperfeição de nossa posição é tal, que o apóstolo disse: “Porque, qual Ele é, somos nós também neste mundo” (1 João 4.17). Se isso fosse tudo, certamente não teríamos necessidade de sacerdócio ou de intercessão advocatícia; todavia a nossa condição é tal, que o apóstolo precisa dizer: “Se alguém pecar”. Isto prova o quão continuamente necessitamos do Advogado. E, bendito seja Deus, nós O temos continuamente; nós O temos vivendo sempre por nós. Ele vive e serve nas alturas. Ele é nossa justiça substitutiva diante de nosso Deus. Ele vive para nos manter sempre justos no céu, e para nos tornar justos quando andamos errado na Terra. Ele é o vínculo divino e indissolúvel entre nossas almas e Deus.

Quarta Parte – Cristo como um Objeto para o coração

Havendo procurado descortinar, nos três capítulos anteriores, as grandes verdades fundamentais ligadas à obra de Cristo por nós – Sua obra no passado e sua obra no presente – Sua expiação e Sua intercessão, devemos agora procurar, pela graciosa ajuda do Espírito de Deus, apresentar ao leitor algo daquilo que as Escrituras nos ensinam quanto ao segundo ramo de nosso assunto, a saber, Cristo como um objeto para o coração.

Trata-se de algo maravilhosamente bendito poder dizer: “Encontrei Alguém que satisfaz perfeitamente meu coração – encontrei a Cristo”. É isto o que nos coloca verdadeiramente acima do mundo. Nos torna completamente independentes dos recursos, aos quais o coração inconverso sempre se apega. Nos concede um descanso permanente. Nos dá uma calma e quietude de espírito que o mundo não pode compreender. O pobre amante do mundo pode pensar que a vida do verdadeiro cristão é muito parada, insípida, chegando até mesmo a ser uma ocupação idiota. Talvez ele fique espantado de ver como alguém pode seguir adiante sem aquilo que ele chama de diversão, distração e prazer; sem teatros, sem festas ou jogos de bola, sem concertos, sem baralho ou bilhar, sem caçadas ou corridas, sem clube ou bate-papo, sem campeonatos de críquete.

Privar o inconverso dessas coisas seria quase o mesmo que levá-lo ao desespero ou à loucura; mas o cristão não deseja tais coisas – ele não as praticaria. Elas seriam até mesmo um aborrecimento para ele. Falamos aqui, evidentemente, do verdadeiro cristão, de alguém que não é meramente cristão de nome, mas de verdade. Oh, há muitos que professam ser cristãos, e até ocupam uma posição elevada em sua profissão cristã, e que, todavia, encontram-se misturados em todas as buscas vãs e frívolas dos homens deste mundo. Pessoas assim podem ser encontradas à mesa de comunhão no dia do Senhor, e no teatro ou em um concerto na segunda-feira; podem ser vistas tomando parte em algum dos ramos da obra cristã no domingo, e durante a semana podem ser encontradas no salão de bilhar, no hipódromo ou em algum outro cenário de vaidade e futilidade.

É mais do que evidente que uma tal pessoa não sabe nada de Cristo como um objeto para o coração. Pode-se até questionar como é que alguém com uma única centelha de vida divina na alma possa achar prazer nos desprezíveis anseios de um mundo ímpio. O cristão sincero e verdadeiro desvia-se instintivamente; e isso não meramente por causa do erro ou do mal que há nessas coisas – apesar dele certamente sentir que são coisas erradas e más – mas porque ele não tem nenhum gosto por elas, e porque encontrou algo infinitamente superior, algo que satisfez perfeitamente todos os desejos da nova natureza. Poderíamos imaginar um anjo do céu tendo prazer em um jogo de bola, em um teatro ou em uma corrida? O simples pensamento disso já é sobremaneira ridículo. Lugares assim são totalmente estranhos a um ser celestial.

E o que é um cristão? É um homem celestial; um participante da natureza divina. Ele está morto para o mundo – morto para o pecado – vivo para Deus. Não tem nem mesmo uma única ligação com o mundo: pertence ao céu. Assim como Cristo, seu Senhor, ele não pertence mais ao mundo. Poderia Cristo tomar parte nos divertimentos, brincadeiras e festejos deste mundo? A própria ideia disso seria uma blasfêmia. Bem, então, o que dizer do cristão? Será que é para ele ser encontrado em lugares onde o seu Senhor não estaria? Pode ele tomar parte em coisas que ele sabe em seu coração serem contrárias a Cristo? Pode ele ir a lugares, frequentar ambientes e se envolver em circunstâncias onde, ele tem que admitir, seu Salvador e Senhor não podem tomar parte? Pode ele ter comunhão com um mundo que odeia Aquele a Quem ele professa dever todas as coisas?

Talvez a alguns de nossos leitores possa parecer que estamos falando de um terreno muito elevado. A estes perguntaremos: Que terreno devemos tomar? Certamente, terreno cristão, se somos cristãos. Bem, então, se devemos assumir uma posição cristã, como podemos saber o que é uma posição cristã? Evidentemente buscando no Novo Testamento. E o que é que ele ensina? Acaso ele dá qualquer autorização para que o cristão se misture, em qualquer forma ou medida, com os divertimentos e os vãos anseios deste presente século mau? Escutemos com atenção as importantes palavras de nosso bendito Senhor em João 17. Escutemos de Seus próprios lábios a verdade quanto à nossa porção, nossa posição, e nosso caminho aqui neste mundo. Ao se dirigir ao Pai, Ele diz: “Dei-lhes a Tua palavra, e o mundo os odiou, porque não são do mundo, assim como Eu não sou do mundo. Não peço que os tires do mundo, mas que os livres do mal. Não são do mundo, como Eu do mundo não sou. Santifica-os na verdade; a Tua Palavra é a verdade. Assim como Tu Me enviaste ao mundo, também Eu os enviei ao mundo” (João 17.14-18).

Será possível conceber uma medida mais próxima de identificação do que a que nos é apresentada nestas palavras? Por duas vezes, nesta breve passagem, nosso Senhor declara que não somos do mundo, assim como Ele não é. O que é que nosso bendito Senhor tinha a ver com o mundo? Nada. O mundo O rejeitou completamente e o expulsou. O mundo pregou-O numa vergonhosa cruz, entre dois malfeitores. O mundo continua tão atual e plenamente sob a acusação de tudo isso como se o ato da crucificação tivesse ocorrido ontem, bem no centro de sua civilização e com o consentimento unânime de todos. Não existe nem mesmo um único vínculo moral entre Cristo e o mundo. Sim, o mundo está manchado com Seu assassinato, e nada terá a dizer a Deus por seu crime.

Quão solene é isto! Que assunto sério para ser considerado pelos cristãos! Estamos passando por um mundo que crucificou a nosso Senhor e Mestre, e Ele declara que não somos deste mundo, assim como Ele não é. Daí vem que se tivermos alguma comunhão com o mundo estaremos sendo falsos para com Cristo. O que pensaríamos de uma esposa que se sentasse, e risse, e contasse anedotas com um grupo de homens que tivesse assassinado seu marido? E é exatamente o que os cristãos professos estão fazendo quando se misturam com o presente mundo mau, e se fazem parte e porção dele.

Talvez alguém pergunte: O que devemos fazer? Devemos sair do mundo? De modo nenhum. Nosso Senhor diz expressamente: “Não peço que os tires do mundo, mas que os livres do mal” (João 17.15). No mundo, mas não do mundo, é o verdadeiro princípio para o cristão. Para nos valermos de uma figura, o cristão no mundo é como um mergulhador equipado com um escafandro. Ele está imerso em um elemento que o destruiria, se não estivesse protegido de sua ação, e mantido por uma contínua comunicação com o cenário que está acima dele.

E o que deve o cristão fazer com o mundo? Qual é a sua missão aqui? Esta: “Assim como Tu me enviaste ao mundo, também Eu os enviei ao mundo”. “Assim como o Pai Me enviou, também Eu vos envio a vós” (João 17.18; 20.21).

Tal é a missão do cristão. Ele não deve se trancar entre as paredes de um mosteiro ou convento. O cristianismo não consiste em se fazer membro de uma irmandade, como monges ou freiras. Nada disso. Somos chamados para estarmos ocupados nas diversas responsabilidades da vida, e para agirmos nas esferas que nos são divinamente designadas, para a glória de Deus. Não é uma questão do que estamos fazendo, mas de como estamos fazendo. Tudo depende do objeto que governa nossos corações. Se for Cristo o que comanda e cativa o coração, tudo estará bem; se não for Ele, nada estará bem. Duas pessoas podem se sentar à mesma mesa para comer; uma come para satisfazer seu apetite, a outra come para a glória de Deus – come simplesmente para conservar seu corpo em forma como vaso de Deus, como templo do Espírito Santo, instrumento para o serviço de Cristo.

Assim deve ser em todas as coisas. Trata-se de nosso doce privilégio colocarmos o Senhor sempre diante de nós. Ele é nosso modelo. Assim como Ele foi enviado ao mundo, nós o somos também. O que foi que Ele veio fazer? Glorificar a Deus. Como foi que Ele viveu? Pelo Pai. “Assim como o Pai, que vive, Me enviou, e Eu vivo pelo Pai, assim quem de Mim se alimenta, também viverá por Mim” (João 6.57).

Isso torna tudo muito simples. Cristo é o padrão e o gabarito para tudo. Já não se trata meramente de uma questão de certo e errado de acordo com as regras humanas; é simplesmente uma questão do que é digno de Cristo. Será que Ele faria isso ou aquilo? Será que Ele iria ali ou acolá? Ele deixou-nos “o exemplo, para que sigais as Suas pisadas” (1 Pedro 2.21). E com toda a certeza, nunca deveríamos ir aonde não pudéssemos enxergar suas benditas pegadas. Se vamos de um lado para o outro unicamente para satisfazer a nós mesmos, não estamos seguindo Suas pisadas, e não podemos esperar desfrutar de sua bendita presença.

Aqui está o verdadeiro segredo do assunto todo. A grande questão é só esta: É Cristo o meu objeto? Para que estou vivendo? Será que posso dizer que “a vida que agora vivo na carne, vivo-a na fé do Filho de Deus, O qual me amou, e Se entregou a Si mesmo por mim” (Gálatas 2.20)? Nada menos do que isto é o que cabe a um cristão. Trata-se de algo demasiadamente miserável estar contente apenas em ser salvo, e então seguir adiante de braços dados com o mundo, vivendo para a satisfação própria e em busca de seus próprios interesses – aceitar a salvação como o fruto da paixão e tribulação de Cristo, e depois viver longe dele. O que iríamos pensar de uma criança que só se importa com as coisas boas que seu pai lhe dá, e que nunca procura a companhia de seu pai – sim, que prefere até a companhia de estranhos? Certamente seria alguém digno de desprezo; mas quão mais desprezível é o cristão que deve todo o seu presente e todo o seu futuro eterno à obra de Cristo e, ainda assim, se contenta em viver a uma fria distância de Sua bendita Pessoa, sem se preocupar nem um pouco com a promoção da Sua causa – com a promoção da Sua glória!

Quinta Parte – A Palavra de Cristo como guia todo-suficiente para o nosso andar

Se o leitor foi, por graça, capacitado a se apossar do que nos foi apresentado nestes capítulos, terá à disposição o remédio perfeito para toda intranquilidade de consciência e para toda inquietude de coração. A obra de Cristo, quando tão somente apropriada por uma fé simples, deverá, por bendita necessidade, atender a intranquilidade de consciência; e a Pessoa de Cristo, quando tão somente contemplada com um olho simples, irá atender perfeitamente toda inquietude de coração. Se, por conseguinte, não nos encontramos desfrutando de paz de consciência, só pode ser por não estarmos descansando na obra consumada de Cristo; e se o coração não estiver à vontade, é prova de que não estamos satisfeitos com o próprio Cristo.

E mesmo assim, quão poucos, mesmo dentre o amado povo do Senhor, conhecem a paz de consciência e a quietude de coração. Quão raro é encontrar uma pessoa desfrutando da verdadeira paz de consciência e de tranquilidade de coração! Os cristãos, de um modo geral, não se encontram nem um pouquinho mais adiantados da condição dos santos do Antigo Testamento. Eles não conhecem a bênção de uma redenção consumada; não estão desfrutando de uma consciência limpa; não podem se aproximar com verdadeiro coração, em inteira certeza de fé, com os corações purificados da má consciência, e o corpo lavado com água limpa; não compreendem a grande verdade que é serem habitados pelo Espírito Santo, que os capacita a clamar “Aba, Pai”. Encontram-se, no que diz respeito à sua experiência, sob a lei; na realidade, nunca entraram na profundidade da bênção que é estar sob o reinado da graça. Eles têm vida. É impossível duvidar disso. Eles amam as coisas divinas; suas preferências, seus hábitos, suas aspirações – sim, até mesmo seus exercícios, conflitos, ansiedades, dúvidas e temores, tudo isso demonstra a existência de vida divina. Eles se encontram, de um certo modo, separados do mundo, mas sua separação é mais negativa que positiva. É mais por verem a completa vaidade do mundo, e sua inabilidade em satisfazer seus corações, do que por terem encontrado em Cristo um objetivo. Perderam o gosto pelas coisas do mundo, mas não encontraram seu lugar e porção no Filho de Deus onde Ele agora está à destra de Deus. As coisas do mundo não podem satisfazê-los, e não se encontram desfrutando da posição, objetivo e esperança celestiais que lhes são próprias; portanto, se encontram em uma condição totalmente anômala; não têm certeza, nem descanso, nem constância de propósitos; não são felizes; não conhecem qual o verdadeiro ponto de apoio; não são nem uma coisa nem outra.

Será que é assim com o leitor? Esperamos sinceramente que não. Cremos que o leitor seja um daqueles que, por graça infinita, conhecem “o que nos é dado gratuitamente por Deus” (1 Coríntios 2.12); que sabem haver passado da morte para a vida – que têm vida eterna; que desfrutam do precioso testemunho do Espírito; que entendem sua associação com uma Cabeça ressurreta e glorificada nos céus, a Quem estão ligados pelo Espírito Santo, que neles habita; que encontraram seu objetivo na Pessoa daquele Ser bendito cuja obra consumada é a base divina e eterna de sua salvação e paz; e que estão sinceramente ansiando pelo bendito momento quando Jesus virá para recebê-los para Si mesmo, para que onde Ele estiver, eles possam estar também, para de lá nunca mais saírem, eternamente.

Isto é cristianismo. Nada mais merece este nome. É algo que permanece em evidente e notável contraste com a religiosidade espúria de nossos dias, a qual não é nem puro judaísmo, nem puro cristianismo, mas uma péssima mistura, composta de alguns elementos de cada, cujo povo inconverso pode adotar e seguir, pois concede liberdade às concupiscências da carne e lhes permite desfrutar dos prazeres e vaidades do mundo, em busca de contentamento para seus corações. O arqui-inimigo de Cristo e das almas foi bem sucedido ao produzir um horrível sistema de religião, meio judaico, meio cristão, combinando, da maneira mais habilidosa, o mundo e a carne, com um certo montante de passagens das Escrituras, utilizadas de modo a destruir sua força moral e impedir sua correta aplicação. As almas ficam, assim, emaranhadas e sem esperança. Por um lado os inconversos são enganados com a ideia de que são cristãos realmente muito bons, e que estão seguindo direto para o céu; e, por outro lado, o querido povo do Senhor é roubado de seu lugar e privilégios que lhe são próprios, e arrastados para baixo pela escura e depressiva influência da atmosfera religiosa que o cercam e quase o sufocam.

Não está, cremos, ao alcance da língua humana expressar as aterrorizantes consequências dessa mistura do povo de Deus com o povo do mundo em um sistema comum de religiosidade e crença teológica. Seu efeito sobre os que pertencem ao povo de Deus é o de cegar seus olhos para as glórias morais do cristianismo, como são apresentadas nas páginas do Novo Testamento; e isto a um ponto tal que se alguém tentar desvendar essas glórias aos seus olhos, será reputado como um entusiasta visionário ou um perigoso herege. O efeito de tudo isso, sobre os que pertencem ao mundo, é o de enganá-los totalmente quanto à sua verdadeira condição, caráter e destino. Ambas as classes de pessoas recitam as mesmas fórmulas, compartilham do mesmo credo, fazem as mesmas orações, são membros da mesma comunidade, tomam parte do mesmo sacramento, estão, em suma, eclesiasticamente, teologicamente, religiosamente unidas.

Talvez se diga em resposta a tudo isso, que nosso Senhor, em Seu maravilhoso sermão de Mateus 13, ensina de modo distinto que o trigo e o joio devem ser deixados a crescer juntos. Sim; mas onde? Na Igreja? Não; mas “no campo”; e Ele nos diz que “o campo é o mundo”. Confundir estas coisas é falsificar a posição cristã como um todo, e se livrar de toda a piedosa disciplina que deve ser exercida na assembleia. É colocar o ensino de nosso Senhor em Mateus 13 em oposição ao ensino do Espírito Santo em 1 Coríntios 5.

Todavia, não vamos nos deter mais neste assunto. Ele é importante e extenso demais para ser tratado em um artigo tão breve quanto este. Talvez venhamos a discuti-lo melhor em alguma outra ocasião. Estamos completamente convencidos de que ele exige a consideração séria do leitor cristão, apoiado, como está de modo tão manifesto, na glória de Cristo, nos verdadeiros interesses do Seu povo, no progresso do evangelho, na integridade do testemunho e serviço cristãos, de modo que seria praticamente impossível superestimar a sua importância. Mas devemos deixá-lo por enquanto, e direcionar este artigo para seu encerramento com uma breve referência ao terceiro e último ramo de nosso assunto, a saber, a Palavra de Cristo como o guia todo-suficiente para nosso caminho.

Se a obra de Cristo é suficiente para a consciência, se Sua bendita Pessoa é suficiente para o coração, então, com toda a certeza, a Sua preciosa Palavra é suficiente para o caminho. Podemos admitir, com toda a confiança possível, que possuímos no divino volume das Sagradas Escrituras tudo o que poderíamos precisar, não apenas para atender as necessidades de nossa senda individual, mas também para as variadas necessidades da Igreja de Deus, nos mínimos detalhes de sua história neste mundo.

Estamos bem cientes de que ao fazermos uma tal afirmação nos expomos a muita zombaria e oposição, vindas de mais de uma direção. Seremos confrontados, por um lado, com os que defendem a tradição e, por outro, por aqueles que lutam pela supremacia do raciocínio e vontade humana; mas isto nos deixa verdadeiramente muito pouco preocupados. Consideramos as tradições dos homens, sejam eles pais, irmãos ou doutores, quando apresentadas como sendo de alguma autoridade, como uma partícula de poeira na balança; e no que se refere ao raciocínio humano, só pode ser comparado ao morcego, ao sol do meio-dia, cego pela luz, e se lançando contra obstáculos que não pode ver.

É do mais profundo gozo para o coração do cristão poder se desvencilhar das conflitantes tradições e doutrinas dos homens e entrar na tranquila luz das Sagradas Escrituras; e quando diante dos impudentes raciocínios do ímpio, do racionalista, do cético, sujeitar todo o seu ser moral à autoridade e poder das Sagradas Escrituras. Ele reconhece, com gratidão, na Palavra de Deus o único padrão perfeito para doutrina, moral, e tudo mais. “Toda a Escritura é divinamente inspirada, e proveitosa para ensinar, para redarguir, para corrigir, para instruir em justiça; para que o homem de Deus seja perfeito, e perfeitamente instruído para toda a boa obra” (2 Timóteo 3.16,17).

De que mais podemos precisar? De nada. Se as Escrituras podem tornar um menino “sábio para a salvação”, e se elas podem tornar um homem “perfeito e perfeitamente instruído para toda a boa obra”, o que é que queremos com a tradição ou com o raciocínio humano?

Se Deus escreveu um volume para nós, se Ele condescendeu em nos dar uma revelação do Seu pensamento, quanto a tudo o que devemos conhecer, pensar, sentir, crer e fazer, iríamos nós nos voltar para um pobre mortal nosso semelhante – seja ele ritualista ou racionalista – para nos ajudar? Longe de nós um tal pensamento! Seria o mesmo que nos voltarmos ao nosso semelhante a fim de acrescentarmos algo à obra consumada de Cristo; a fim de fazê-la suficiente para a nossa própria consciência, ou suprir o necessário para cobrir alguma deficiência que encontrássemos na Pessoa de Cristo, visando fazer dele um objeto que fosse suficiente para nosso coração. Seria como nos entregarmos à tradição ou ao raciocínio humano para suprir alguma deficiência que encontrássemos na revelação divina.

Todo louvor e graças sejam ao nosso Deus por não ser este o caso. Ele nos deu, em Seu amado Filho, tudo o que necessitamos para a consciência, para o coração, para o caminho aqui – para o tempo, com todos os seus cenários em constante mutação – para a eternidade, com suas eras incontáveis.

Podemos dizer:

Tu, Oh, Cristo, és tudo de que precisamos; Mais que tudo em Ti encontramos.

Não há, e nem poderia existir, qualquer falta no Cristo de Deus. Sua expiação e Sua intercessão devem satisfazer todos os anseios da consciência mais profundamente exercitada. As glórias morais – a poderosa atração de Sua divina Pessoa – devem satisfazer as mais intensas aspirações e desejos do coração. E sua inigualável revelação – esse volume sem preço – contém entre suas capas tudo o que possamos necessitar, do princípio ao fim de nossa carreira cristã.

Leitor cristão: acaso essas coisas não são assim? Acaso você não reconhece a verdade que há nelas, do mais íntimo do seu ser moral renovado? Se assim for, será que você está descansando, em tranquilo repouso, na obra de Cristo? Está se deleitando em Sua Pessoa? Está se sujeitando, em todas as coisas, à autoridade da Sua Palavra? Deus queira que assim possa ser com você, e com todos os que professam o Seu nome! Possa haver um testemunho cada vez mais pleno, mais claro e mais decidido para a total suficiência de Cristo, até aquele dia.