FORA DO ARRAIAL, LONGE DO ARRAIAL

 

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“Saiamos pois a Ele fora do arraial levando o Seu vitupério” Hb 13:13. Poderíamos fazer várias perguntas em relação a este versículo da Bíblia. A quem foi dirigido este apelo? Por que foi dirigido? Pode ser aplicado a nós? E, se for para nós, qual é o seu motivo e significado? Busquemos a resposta a estas perguntas no temor do Senhor e para proveito de nossas almas.

Este versículo, assim como toda a epístola aos Hebreus, foi escrito para os judeus convertidos ao Cristianismo. Existem muitas razões para se crer que seu autor foi o apóstolo Paulo. Embora Paulo fosse o apóstolo dos gentios, nesta ocasião o Espírito de Deus o utilizou para redigir uma admoestação direta e especial aos judeus que haviam se arrependido, reconhecendo que sua nação havia rechaçado o seu Messias. Embora tendo aceitado ao Senhor Jesus como seu Salvador, os judeus recém-convertidos continuavam, naturalmente, ligados ao templo, aos ritos e costumes do judaísmo. Haviam sido criados nesse sistema, uma boa parte do qual fora instituído pelo próprio Deus. Mas agora, a partir da rejeição do Senhor Jesus — da rejeição do testemunho do Espírito Santo acerca do Cristo glorificado — Deus passou a desaprovar completamente esse sistema.

O Cristianismo nunca foi um mero complemento do judaísmo, ou a sua continuidade, mas tratava-se de algo inteiramente novo. Deus estava chamando para fora, de entre os judeus e gentios, um povo para o céu, com esperanças celestiais — nunca terrenais (Atos 15:14). Os Cristãos viriam a ser um povo na terra à espera da vinda do Senhor do céu. Não deveriam ter uma religião de formas e cerimônias, tal como os judeus tinham, porém deveriam adorar a Deus em espírito. Os formalismos e ritos haviam de ser substituídos por sacrifícios espirituais. Tudo estava sendo encaminhado de forma a estabelecer um marcante contraste em relação ao que existia anteriormente. A forma judaica não somente tinha que ser abandonada, como também o próprio Deus iria julgar essa nação culpada, que teve a ousadia de dizer “O Seu sangue caia sobre nós e sobre nossos filhos” (Mt 27.25). A sentença anunciada em Mateus 22.7, “enviando seus exércitos, destruiu aqueles homicidas, e incendiou a sua cidade”, foi prontamente executada. Deus estava executando juízo sobre esse povo culpado e dirige, nesta tão bela e instrutiva epístola aos hebreus, uma ordem àqueles que creram dentre os judeus, para que se separassem totalmente daquilo que em breve iria ser objeto do juízo de Deus.

Toda a epístola aos Hebreus é formada de contrastes. O seu objetivo e propósito era de revelar aos judeus Cristãos que agora eles tinham algo melhor. A palavra melhor é repetida muitas vezes neste livro. Eles não perderiam nada ao abandonarem as fórmulas exteriores, ordenanças e cerimônias de sua religião, trocando-as pelo espiritual e celestial, porque tudo resultaria em algo melhor.

Há muito proveito, quando se lê Hebreus, em se constatar que todas as cerimônias que Deus dera aos judeus eram apenas tipos e sombras das coisas melhores que agora tinham chegado. Tudo o que tinha conexão com o santuário terrestre havia servido com o propósito de assinalar as benditas realidades que agora haviam sido introduzidas. Portanto, eles não estariam perdendo ao se voltarem às coisas melhores relacionadas com Cristo na glória; a tudo aquilo que havia realizado mediante Sua morte e ressurreição. Com tal fundamento estabelecido na epístola, o Espírito Santo afetuosamente os convida a saírem a Cristo, “fora do arraial”.

Israel foi muitas vezes chamado de “arraial”. Logo que os israelitas foram redimidos e tirados do Egito encontramos em Êxodo 14.19 que “o anjo de Deus, que ia adiante do exército (ou “arraial”, conforme algumas versões) de Israel, se retirou, e ia atrás deles”. A expressão — arraial — era facilmente compreendida pelos judeus convertidos como uma referência a Israel e a Jerusalém. Eles foram chamados a sair fora do arraial, porém não somente isto. O apelo é para que definitivamente se dirigissem a Ele (Cristo). Disto se deduz que o Senhor Jesus está fora do arraial. Quando Cristo veio ao mundo, achegou-Se a Israel — “veio para o que era Seu, e os Seus não O receberam” (Jo 1.11). Finalmente, depois de haver sido apresentado àquele povo em cada aspecto da Sua Pessoa, de acordo com as promessas e profecias (Rei, Sacerdote, Profeta, Messias, Salvador etc.), teve que deixá-los dizendo “Eis que a vossa casa vai ficar-vos deserta” (Mt 23.38). Posteriormente Ele foi conduzido para fora do centro religioso — Jerusalém — sendo crucificado “fora da porta”. Vemos, portanto, que o Senhor Jesus já não Se encontrava mais conectado ao arraial de Israel e sua religião de sombras.

Em Hebreus 13.13, de que estamos falando, provavelmente exista uma alusão à cena descrita em Êxodo 33.7, quando Moisés, divinamente ensinado, tomou “a tenda, e a estendeu para si fora do arraial, desviada longe do arraial”, porque aquele arraial havia se transformado em um lugar contaminado. Deus não podia permanecer um minuto sequer em um lugar que havia sido profanado por causa da presença e adoração do bezerro de ouro (Êx 32). Moisés compreendeu os pensamentos de Deus e não somente levou a arca para fora do arraial, mas a levou para longe do arraial (Êx 33.7) Assim foi também nos dias em que a epístola aos Hebreus foi escrita aos judeus Cristãos. O arraial estava contaminado e havia sido rejeitado por Deus e, consequentemente, Cristo estava separado de todo aquele sistema. Por isso os judeus Cristãos foram exortados a sair para fora do arraial, ao próprio Senhor Jesus. Os que deram ouvidos ao apelo daqueles dias, deixaram o templo, e finalmente deixaram também Jerusalém, antes que fosse incendiada e destruída no ano 70 pelos exércitos do Império Romano, tal como o Senhor havia anunciado em Mateus 22.7. Então a separação entre a Cristianismo e o judaísmo foi definitiva. É muito triste constatarmos hoje que aquele Cristianismo do início acabou cedendo à influência do judaísmo, retrocedendo a uma religião de formalismos exteriores, cerimônias e rituais reconhecidamente imperfeitos.

Vimos, então, que o apelo para que saíssem do arraial, para Cristo, foi feito primeiramente aos Cristãos em Jerusalém, e por eles atendido. Eles encontraram as coisas melhores, as coisas superiores no Cristianismo, e tiveram que abandonar os meros símbolos e figuras que, na época de Israel, apontavam para Cristo. E tiveram que sair a Ele, que estava agora fora de todo o sistema judeu.

Passemos, agora, às perguntas que dizem respeito a nós: Este convite para sair fora do arraial pode ser aplicado a nós? E, se assim for, qual é o seu verdadeiro significado e aplicação? Aplica-se aos dias de hoje? Para responder melhor a estas perguntas devemos antes indagar algo: Existe, nos dias de hoje, algo que corresponda ao arraial do tempo de Israel? Infelizmente temos que admitir que sim; e isto é muito triste. Existe algo que em muitos aspectos corresponde ao “arraial” que existia no tempo de Israel. E é a vasta profissão da Cristandade de nossos dias.

O Cristianismo não reteve por muito tempo o seu caráter celestial, porém foi influenciado pelo judaísmo, que era uma religião terrenal. No Novo Testamento não encontramos qualquer evidência de que a Igreja de Deus na terra praticasse algum rito de um tabernáculo terrenal. Israel teve uma religião dada por Deus, mas em conformidade com o homem na carne. Assim, o homem não precisava de um novo nascimento para desfrutar e apreciar a magnificência do templo (Lc 21.5), seu mobiliário grandioso, seus sacrifícios, seus sacerdotes em trajes de gala, seus cantores bem treinados, etc. Todas essas coisas davam prazer à carne do homem natural. Mas o Cristianismo nunca as reconheceu como tendo sido dadas por Deus para si. Na Bíblia jamais lemos de um templo Cristão, mas, ao contrário, o Senhor disse à mulher samaritana que já não existiria um lugar terrenal para a adoração, mas que viria a hora “e agora é, em que os verdadeiros adoradores adorarão o Pai em espírito e em verdade” (Jo 4.21-24). Era isto que deveria caracterizar esta época. Os primeiros Cristãos se reuniam em casas particulares, e até no terceiro andar, como encontramos quando Paulo pregou em Troas (At 12.12; 20.5-11; Rm 16.5).

Lemos que o Senhor e os apóstolos cantaram um hino, antes de saírem, na noite em que Ele foi traído, porém não se faz menção em todo o Novo Testamento, nem nesta oportunidade e nem em outras, do uso de instrumentos musicais, relacionando-os com adoração ou serviço Cristão.

Encontramos, isto sim, exortações para cantarmos melodias com nosso coração ao Senhor, cantando com entendimento na assembleia, porém jamais com a ajuda de instrumentos musicais. Por outro lado, o uso de instrumentos musicais era bastante adequado à dispensação passada e formava parte do cerimonial judaico.

O judaísmo tinha sacerdotes que se colocavam entre o povo e Deus. O povo, como uma entidade, não podia aproximar-se de Deus. No Cristianismo autêntico todas as pessoas salvas são sacerdotes e estão plenamente qualificadas para oferecer, diretamente a Deus, sacrifícios espirituais (1 Pd 2.5). Porém, hoje em dia se conta com ministros, sacerdotes e outros mais que se colocam como superiores sobre todo o povo, dividindo a Igreja de Deus em clérigos e leigos. Isto nunca esteve na mente de Deus que fez com que todos, “pelo sangue de Cristo”, se aproximassem d’Ele (Ef 2.13).

Contemplando o panorama atual, encontramos a Cristandade dotada de esplêndidos edifícios, grandiosas decorações, ornamentos especiais, etc, que não passam de imitação do Antigo Testamento, da época dos símbolos e das sombras “dos bens futuros” (1 Co 10.11; Hb 10.1). Hoje se ouve música instrumental da mais alta qualidade e exalta-se os talentos mais refinados, supostamente úteis para a adoração ao Senhor. Pode-se ver o clero e cada aspecto de uma religião terrenal, porém o caráter celestial é perdido! Trata-se do mundo e do judaísmo mesclados com o Cristianismo para satisfazer ao homem natural.