A AUTORIDADE DIVINA DELEGADA A ASSEMBLEIA

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“Em verdade vos digo que tudo o que ligardes na terra será ligado no céu, e tudo o que desligardes na terra será desligado no céu”. Mt. 18:18

Não há nenhuma dúvida que o assunto da autoridade da Assembleia local, para ligar e desligar em nome do Senhor Jesus Cristo, representa o poder mais alto e extraordinário que lhe foi concedido e confiado. Tal autoridade foi delegada e garantida pelo próprio Senhor Jesus Cristo para ser exercida em Seu nome e em Seu lugar. E como a Assembleia possui tão nobre e elevado privilégio, isso por sua vez, compromete sua maior responsabilidade, pois embora tenha todo o poder de exercer essa autoridade de sua competência, existe a grande necessidade de administrá-la em temor e dependência do Senhor, e no âmbito de esfera própria em que tal autoridade foi delegada.

É triste ter de admitir que muitos irmãos reunidos ao nome do Senhor Jesus Cristo não discernem corretamente a natureza, o alcance e a incumbência da autoridade delegada pelo Senhor à Assembleia local, e com frequência, devemos lamentar decisões que nos chamam a atenção e nos convidam a revisar como estamos administrando este poder divinamente concedido. Quando tomamos consciência que o exercício desse poder liga a todos os irmãos e as Assembleias em comunhão, isso exige que sejamos sumamente cuidadosos ao exercê-lo e administrá-lo. Queremos ser claros para dizer, com espírito determinado, que por este artigo procuramos, com a ajuda do Senhor e das Escrituras, meditar sobre alguns princípios que devemos ter presentes na hora de ligar e desligar segundo Mateus 18:18.

É bom começar considerando a própria natureza do princípio de autoridade. E o que aprendemos primeiro na Palavra de Deus a esse respeito é que Deus é a fonte de toda forma de autoridade. “…não há potestade que não venha de Deus; e as potestades que há foram ordenadas por Deus” (Rm. 13:1). Ver também 1 Pedro. 2:13-14: “Sujeitai-vos, pois, a toda a ordenação humana por amor do Senhor; quer ao rei, como superior; Quer aos governadores, como por ele enviados para castigo dos malfeitores, e para louvor dos que fazem o bem”. Só em Deus há autoridade por natureza. Ela é uma prerrogativa de Seu próprio Ser ou natureza divina.  E assim, Ele tem prazer, em certos casos, em delegar Sua autoridade ao homem para que este a exerça em Seu lugar, a fim de castigar ou colocar um freio no mal, de estimular o bem, de gerar e manter a ordem, de conceder aos Seus a administração dos Seus interesses, etc. E no caso da Assembleia, o faz especialmente para manter a santidade e a ordem na Casa de Deus. Aprendemos então que a autoridade divina é delegada a um determinado sujeito (a assembleia local) que tem a responsabilidade de administrá-la.

É importante notar que nas Escrituras existem diversos gêneros de autoridade. Apenas mencionaremos alguns deles para ilustrar a questão que agora desenvolvemos, sem pretender esgotar a matéria. Em tal sentido, podemos dizer que a primeira delegação de autoridade que encontramos nas Escrituras é a que Deus fez em favor de Adão na criação. Deus colocou Adão como sua própria imagem ante a criação e lhe concedeu o senhorio sobre ela. “… enchei a terra, e sujeitai-a; e dominai sobre os peixes do mar e sobre as aves dos céus, e sobre todo o animal que se move sobre a terra”. (Gn. 1:28). Existiu na criação do homem, a delegação de autoridade e senhorio para dominar sobre a própria criação e suas criaturas. Logo, com a entrada do pecado, com a corrupção do homem e com a inusitada multiplicação da violência homicida, Deus estabeleceu um novo princípio de autoridade: o governo humano. Então, trouxe o dilúvio. Ele concedeu ao homem o poder de governar o homem. “Quem derramar o sangue do homem, pelo homem o seu sangue será derramado; porque Deus fez o homem conforme a sua imagem” (Gn. 9:6). Deus confiou ao homem uma autoridade tão grande como a de executar o homicida voluntário. E este é o ato de maior autoridade que se confere a um governante deste mundo.

Mas é importante notar que sempre que Deus delega autoridade, não o faz indiscriminadamente senão que junto com ela também vão acompanhadas suas limitações. O primeiro Adão nenhuma autoridade tinha sobre as coisas celestes e eternas, tampouco sobre os anjos. Assim também a autoridade confiada a um governante não é ilimitada. Deus não lhe concedeu executar os homens por qualquer coisa, deve respeitar a outros governantes superiores ou de seu mesmo nível, e até mesmo sua autoridade está limitada pela de outros que a exercem em uma jurisdição que não lhe pertence.

Até aqui é claro que temos a autoridade do homem sobre a criação e as criaturas, e a autoridade do homem sobre o homem (o governo humano), as quais nada têm a ver com a da Assembleia em Mateus 18:18. Deus delegou sua autoridade em distintos âmbitos para que seja exercida nesses respectivos âmbitos que determinam sua especial incumbência. Por mais evidente que seja, é próprio dizer que a Assembleia de Deus não foi chamada para governar o mundo, para castigar o homicida, para cobrar impostos terrenais, nem assenhorar-se sobre as criaturas. Seu âmbito de autoridade está devidamente circunscrito à administração dos interesses atribuídos à Casa de Deus.

Ao chegar aqui é necessário fazer uma pergunta esclarecedora. Onde repousa a autoridade delegada pelo Senhor em Mateus 18:18? Qual é seu âmbito e o sujeito que a aplica? Poderíamos admitir a existência do poder conferido por Cristo para ligar e desligar e reconhecer que ele está plenamente garantido pelo céu, mas também poderia existir muito erro acerca de quem é o sujeito autorizado para exercê-lo legitimamente. A autoridade divina foi delegada a um sujeito concreto e qualquer estranho que a tome não pode ser endossado nem aprovado pela fonte que a delega. E por isso que é de suma importância ter presente qual é o sujeito que detém o poder para ligar e desligar conforme a autoridade que o Senhor delega em Mateus 18:18. Há algumas passagens que nos mostram isso de uma maneira muito clara. A primeira se encontra no mesmo contexto de Mateus 18:18. Se tivermos presente que não podemos separar este versículo dos versículos seguintes, advertiremos que é a Assembleia local a depositária de tal poder. Recordemos que Mateus 18:18 unido a Mateus. 18:20 expressa o princípio do que é a Assembleia local (“Porque, onde estiverem dois ou três reunidos em meu nome, aí estou eu no meio deles”).

Mas há também outra passagem sumamente esclarecedora: 1 Coríntios 5. Todo o contexto desse capítulo mostra que a autoridade da Assembleia local é insubstituível. Um irmão, por mais dotado que seja, um grupo de irmãos, por mais sábios, íntegros e santos que sejam, outras Assembleias, por mais próximas que estejam e mesmo o apóstolo Paulo, por maior que tenha sido seu ministério na obra do Senhor, não podia substituir a ação que devia realizar por si mesma, a Assembleia local em Corinto. Notemos que havia ali um caso de imoralidade não julgada (v.1-2), e não obstante, Paulo não executa pessoalmente a ação de excomunhão em independência da Assembleia. Sua autoridade apostólica não podia substituir a autoridade do Senhor na Assembleia em Corinto, embora pudesse agir junto a ela. Observemos que Paulo move a consciência da Assembleia para que seja ela que o faça, mesmo quando ele se junta a ela e direciona sua autoridade apostólica através dela. Ele havia julgado o caso imoral no seu espírito (v.3), mas tal coisa não significava a excomunhão do ofensor nem substituía a autoridade da Assembleia local. Ele concordou com a ação da Assembleia em seu próprio espírito, mas não substituiu a Assembleia agindo no poder de Cristo, mesmo quando sua autoridade apostólica e a Assembleia local fossem agir da mesma maneira.

Notemos: “Em nome de nosso Senhor Jesus Cristo, juntos vós e o meu espírito, pelo poder de nosso Senhor Jesus Cristo, seja, este tal, entregue a Satanás para destruição da carne, para que o espírito seja salvo no dia do Senhor Jesus” (v. 4-5). É evidente que o juízo de Paulo não substituiu o da Assembleia, pois ele havia julgado em seu espírito ao ofensor, mas esse juízo não havia resultado na excomunhão. Era necessário o exercício do poder da Assembleia local e então, ele sim se associa à ação. Este poder se vê também nas expressões: “Não julgais vós os que estão dentro?” (v. 12), e “Tirai pois dentre vós a esse iníquo” (v.13). Estes “vós” permitem ver definitivamente que a autoridade de Cristo repousa nos santos da localidade. A ausência de apóstolos hoje (falamos de apóstolo como dom nos fundamentos da Assembleia), não autoriza ninguém a querer mover uma Assembleia por sua pretendida autoridade. É a própria Assembleia que deve exercer a autoridade que lhe foi delegada.

Tudo isso nos permite observar que a autoridade de Cristo repousa na Assembleia local, e o exercício dessa autoridade é insubstituível e indelegável. Nem mesmo o apóstolo Paulo podia exercer a autoridade que o Senhor havia confiado à Assembleia (embora sim associar-se e exercer sua autoridade apostólica sobre ela), de outro modo, ele mesmo teria excomungado o ofensor. Só excepcionalmente Paulo usou sua autoridade na Assembleia por ser tal autoridade somente um privilégio apostólico. Um dom, por maior que seja, não é depositário de Cristo para ligar e desligar. Por mais que a Assembleia em Corinto tivesse sido negligente em julgar o caso, e estando, por sua vaidade e orgulho, impedida de agir (vs. 2,6), não havia autorização para que outro estranho exercesse sua autoridade. Paulo não o fez excluindo a Assembleia. O apóstolo tampouco reuniu irmãos dotados de outras Assembleias para que o fizessem, nem chamou as Assembleias mais próximas nem distantes para que executassem a excomunhão. Ele moveu a consciência da Assembleia local para que ela mesma exercesse a autoridade que gozava em nome do Senhor, e ele se uniu à ação com sua autoridade apostólica. A aplicação da Palavra foi suficiente para que a Assembleia reagisse e executasse o juízo. Essa é uma verdade solene, pois a autoridade de Cristo repousa na Assembleia local, e esta, como temos dito, é insubstituível e indelegável. Paulo não desconheceu tal autoridade mesmo quando a Assembleia tinha sido negligente, nem substituiu o exercício da mesma, nem trouxe outros para que o fizessem. É evidente que sua autoridade apostólica, ou mesmo toda a autoridade que um irmão possa ostentar mediante um dom, não pode substituir a ação da Assembleia local (*).

(*) Reconhecemos que um apóstolo, como portador desse dom nos fundamentos da Assembleia, possuía prerrogativas muito especiais e uma ampla disposição de autoridade. E entre suas prerrogativas especiais, estava a de exercer tal autoridade de uma maneira direta, sem intervenção da Assembleia, tal como Pedro no caso de Ananias e Safira (At. 5:1-11), e Paulo no de Himeneu e Alexandre (1 Tm. 1:20); mas quando o Espírito nos apresenta a Assembleia local em sua ordem, privilégio e responsabilidade, como é o caso da primeira epístola aos Coríntios, então a ação é de sua exclusiva esfera. Não tendo hoje apóstolos como Pedro e Paulo, entendemos que o poder da disciplina e excomunhão fica exclusivamente na Assembleia local.

Desconhecer que uma Assembleia possui autoridade do Senhor para resolver seus assuntos e administrar seus interesses é verdadeiramente algo muito sério. Tal coisa é desconhecer ali a presença de Cristo e de Sua autoridade. Além disso, não existe nenhum versículo bíblico que propicie hierarquia entre Assembleias de maneira que uma faça uso da autoridade que pertence à outra. Não há base bíblica para dizer que uma Assembleia possui mais autoridade que outra em Mateus 18:18, nem que uma Assembleia pode intervir em outra para executar disciplina e excomunhão. Isso supõe uma verdadeira perversão do princípio que nos ocupa e o desconhecimento da autoridade do Senhor na Assembleia local.

Quem age assim está cometendo um erro muito mais grave que aquele que pretende corrigir, pois justamente a essência da Assembleia é a presença de Cristo e Sua autoridade no meio dos santos (Mt. 18:20). E se negamos tal presença em uma Assembleia local, por mais desordem que haja nela, nós mesmos ficamos moralmente fora da Assembleia. Alguém que não saiba reconhecer a presença de Cristo e de Sua autoridade no meio de uma Assembleia está moralmente no terreno dos sistemas e denominações. Não há autoridade de Cristo para negar autoridade de Cristo. Ninguém ostenta a autoridade de Cristo para negar essa autoridade em uma Assembleia que administra seus próprios interesses locais.

Os capítulos 2 e 3 de Apocalipse também nos oferecem um claro testemunho que endossa a autoridade de Cristo repousando na Assembleia local. Notamos ali que as mensagens às sete igrejas estão dirigidas “ao anjo da Igreja em…” (Ap. 2:1,8,12,18; 3:1,7,14). Sabemos que os anjos não formam a Igreja de Deus, nem foram auxiliados pela redenção. Sem dúvida que aqui, o conceito de “anjo” mostra justamente o princípio administrativo de autoridade, dignidade e responsabilidade em cada uma dessas Assembleias locais. E embora exista a solene exortação para ouvir o que o Espírito diz às igrejas em seu conjunto (Ap.: 2:7,11,17,29; 3:6,13,22), pois o ouvido espiritual é instruído em cada mensagem, igualmente é certo que o Senhor fala a cada uma delas conforme o seu estado. E por sua vez, cada uma delas é chamada a corrigir-se e voltar-se de seus próprios males de acordo com sua própria e intransferível responsabilidade. Assim, o que é exigido de uma, não se exige de outra, e nenhuma pode vir a dar resposta por outra. Há sem dúvida uma administração local que faz a Assembleia responsável pelo seu próprio estado e nunca se exige de uma Assembleia que supra, suplante ou substitua a outra na questão da responsabilidade que tem no exercício de sua própria administração local. Isso mostra como a autoridade repousa na Assembleia local e outra não pode substituí-la por mais próxima que seja.

Não vamos multiplicar os exemplos, pois a simples leitura das passagens que citamos mostra isso com toda clareza. Só tomemos um caso. O Senhor tem contra Éfeso que deixou seu primeiro amor e a chama a arrepender-se e praticar as primeiras obras. E isso, sob a advertência de tirar do lugar seu castiçal (2:4-5). Acerca de tal coisa, todas as Assembleias podiam aprender, mas nenhuma delas poderia substituir a Éfeso no arrependimento ao qual foi chamada; nem Éfeso podia delegar à outra, o que ela devia realizar pelo exercício de sua própria autoridade e responsabilidade. Não queremos ser mal compreendidos ao dizer tudo isto. Não falamos do pernicioso princípio de independência eclesiástica, que se apropria do pretendido poder de negar a autoridade de Cristo em outra ou outras Assembleias. Aqui falamos do exercício da própria autoridade que cabe a cada Assembleia. E só o fato de que existam sete mensagens distintas, uma para cada Assembleia, demonstra que tais mensagens não eram intercambiáveis. Cada uma delas teria a sua aprovação ou desaprovação do Senhor e era chamada a exercer sua autoridade responsável em relação ao que diretamente lhe correspondia.

O leitor poderá notar claramente estes princípios lendo os capítulos 2 e 3 de Apocalipse. Em definitivo, esses capítulos sustêm de uma maneira subentendida, mas sumamente evidente, que cada Assembleia possuía em si mesma a responsabilidade e autoridade na administração de seus próprios assuntos, e tais coisas jamais se delegava a outras. O “anjo” da Assembleia é a representação responsável e administrativa da mensagem que em particular se lhe dirigia, e jamais era chamado a intervir em outra Assembleia. Em todos os casos, era a mesma mão judicial de Cristo quem trataria diretamente com a Assembleia caso Sua voz não fosse ouvida. Não se estabelece aqui a possibilidade de que seja outra Assembleia ou um conjunto delas, as que intervenham para julgar o mal de quaisquer delas.

Tampouco se deve pensar que o fato de que uma Assembleia haja estendido a destra de comunhão a um grupo de irmãos que se reúne ao nome do Senhor, isso suponha uma autoridade especial daquela sobre estes. Reconhecidos em comunhão, os santos de uma localidade como Assembleia e administradores dos interesses do Senhor no lugar, hão de ser reconhecidos como ostentando a presença e autoridade de Cristo como qualquer outra Assembleia. Dar a destra de comunhão não supõe um ato de superioridade nem o estabelecimento de uma hierarquia entre Assembleias, senão o reconhecimento do que Deus e o Senhor já estabeleceram. “… quando viram que o evangelho da incircuncisão me estava confiado… E conhecendo Tiago, Cefas e João, a graça que me havia sido dada… deram-nos as destras, em comunhão comigo e com Barnabé, para que nós fôssemos aos gentios, e eles à circuncisão” (Gl. 2:7-9).

No assunto que nos ocupa devemos dizer que é uma verdadeira desordem que uma Assembleia discipline ou excomungue irmãos de outras assembleias. Por 1 Coríntios 5 podemos apreciar com clareza que a autoridade do Senhor em Corinto se reduzia a tirar o perverso de entre eles (a Assembleia local – v. 2,13), mas não de outras Assembleias. Ainda quando se pudesse haver produzido uma divisão entre irmãos de uma localidade, não podemos exercer autoridade em uma localidade estranha à nossa. Podemos, na medida em que estejamos capacitados, ajudar com a Palavra para esclarecer os pensamentos de Deus nos temas e dificuldades em questão; podemos mover a consciência da Assembleia com a Palavra, tal como fez Paulo; podemos julgar um mal em nossos próprios espíritos, tal como fez Paulo; podemos tomar todo o tempo necessário para procurarmos resolver as diferenças; mas não podemos tomar a autoridade de Cristo que compete a qualquer Assembleia. E no caso em que uma divisão persista, deveremos esperar que o Senhor esclareça onde agiu a independência divisora e onde Ele reconhece Sua Assembleia. Mas indubitavelmente não podemos exercer a autoridade confiada em Mateus 18:18 em uma localidade onde haja outra Assembleia administrando os mesmos interesses. A expressão “tirai pois dentre vós a esse iníquo” (v. 13), mostra sem lugar a dúvidas que a ação de excomunhão devia ser realizada pela Assembleia de Corinto, e não por outra.

É sem dúvida nossa carne não julgada, nosso sentimento de superioridade, nosso zelo equivocado, nosso orgulhoso pensamento que somos mais fiéis que outros e que a Assembleia depende de nossa fidelidade pessoal, o que nos leva a agir apressadamente e nos intrometer ali onde devemos deixar que a autoridade de Cristo se manifeste. A atitude de Paulo é a correta. Pensemos quantas desordens graves havia em Corinto (se embriagavam na Ceia do Senhor, ministravam em desordem, participavam do sacrificado aos ídolos, toleravam a formicação, havia divisões entre eles, etc.), porém Paulo, por fé, seguiu considerando que o poder de Cristo estava entre eles para se limparem e ser “nova massa, sem fermento” (1 Co. 5:7). E como sabemos pela segunda epístola aos Coríntios, a Assembleia se limpou e regressou à ordem divina (2 Co. 7:11). Esta é a atitude que necessitamos cada vez que considerarmos o mal que possa brotar em uma Assembleia; mas jamais temos que intervir para exercer uma autoridade que não é nossa. Enfim, Mateus 18:18 constitui um solene princípio de delegação de autoridade divina, mas tal poder não é ilimitado nem absoluto. Ele se circunscreve à Assembleia local. Junto com a delegação, temos seu âmbito próprio que determina por sua vez, sua limitação. Mateus 18:18 não é prerrogativa de um dom ou de alguém que possui um ministério notável. É assunto do conjunto dos irmãos da Assembleia local.

Também tenhamos presente que o Senhor delegou esta autoridade, mas não delegou infalibilidade em seu exercício. E é por isso que se ligarmos com erro, também poderemos desligar a ação. Não se perde a autoridade conferida pelo Senhor quando desligarmos o que ligamos com erro. Retratar-se segundo a direção do Espírito é uma virtude louvável que fala de grandeza de coração e dependência ao Senhor. Aferrar-se ao poder da Assembleia local com um sentimento de orgulho e infalibilidade conduz a um autoritarismo carnal que não é conforme o Espírito do Senhor. Todo o poder conferido deve ser necessariamente acompanhado da humilhação que nos mantêm na presença do Senhor. É sumamente triste ver irmãos cheios de orgulho de posição, que perturba o discernimento espiritual e pretende levar as ações da Assembleia ao errôneo terreno da infalibilidade. Autoridade não é sinônimo de infalibilidade. A legitimidade da ostentação de autoridade administrativa local, não supõe infalibilidade por mais que o céu avalize a autoridade conferida.

Para finalizar, vamos entender brevemente duas passagens que alguns utilizaram com erro. Em primeiro lugar consideremos Deuteronômio 13:12-18. Ali temos o mal da idolatria surgindo em uma cidade de Israel, a qual toda a nação teve que destruir como anátema. Alguns afirmam que é de aplicação atual o princípio que se o mal não é julgado numa Assembleia, todas as demais devem fazê-lo e excomungar a primeira. Além de não ser esta uma verdade que encontramos em 1 Coríntios 5 e de não possuir o Novo Testamento nenhuma passagem que nos autorize a isto, devemos ter presente uma imensa diferença entre Israel e a Igreja. Em Israel havia muitas cidades locais, mas um só centro divino e lugar onde o nome de Jeová havia sido colocado (Deuteronômio 12:5; ler todo o capítulo); enquanto que em nosso tempo dispensacional cada Assembleia local possui Cristo como centro divino (Mateus 18:20). E essa verdade nos leva a considerar pela fé que sempre há caminhos pelos quais o Senhor pode agir em cada Assembleia local para resolver qualquer desordem.

Poderíamos hoje encontrar uma Assembleia com as mesmas copiosas desordens como a de Corinto? Sem dúvida que não. E não obstante o Senhor teve caminhos e remédios para levá-la à ordem. Este é o espírito de fé que deve guiar-nos ante qualquer dificuldade que se apresente. E tenhamos presente que não existe excomunhão de Assembleias, nem um grupo de Assembleias pode exercer uma medida disciplinar sobre outra Assembleia. Tal coisa é estranha às Escrituras. É possível que em casos excepcionais possa existir uma separação da comunhão a respeito de um grupo que sistematicamente se obstina a perseverar no mal. Mas isso não é excomunhão de Assembleias senão separação do mal que domina um grupo; um grupo que por sua iniquidade persistente não pode ser reconhecido como a Assembleia. Mas cremos que isto a mão de Cristo faz, e não a nossa.

Outro texto mal aplicado é Deuteronômio 21:1-9. Ali se ordena realizar uma expiação por causa de um homicídio cujo autor se desconhece e para isto se determinava uma expiação na cidade mais próxima. Pretende-se extrair o princípio que ante um mal aparentemente não solucionável em uma Assembleia local, a Assembleia mais próxima tem competência para agir. Isto é uma inteira falácia. Como dissemos, as cidades de Israel, salvo Jerusalém, não tinham um lugar divino onde Deus estava presente no meio, enquanto que agora, cada Assembleia possui a presença espiritual do Senhor como centro divino. E esta presença é suficiente para resolver qualquer situação. Ademais, o caso que citamos exigia que uma cidade se ocupasse do homicídio quando havia ocorrido no campo e sem testemunhas. Como se desconhecia o autor do mal, não se podia executar o juízo sobre o culpado. Em contrataste com isso, a esfera e responsabilidade da Assembleia se reduzem ao mal conhecido. Se não há autor identificável de um determinado mal, tampouco pode haver juízo da Assembleia. Sem testemunhas, provas ou confissão, não existe a possibilidade de acreditar em nada (2 Co. 13:1). O solene fato de que a presença espiritual de Cristo está na Assembleia local e que esta possui poder conferido em Mateus 18:18, não autoriza a intervir em outras Assembleias estranhas à nossa localidade para fazer uso do poder que a ela se há delegado. Não negamos a ajuda que uma Assembleia mais próxima possa dar a outra Assembleia em conflito, mas o que dizemos é que jamais uma pode tomar a autoridade da outra. Insistimos no princípio de que não há autoridade de Cristo para negar a autoridade de Cristo.

Anexo

Em nosso artigo insistimos e salientamos o princípio de autoridade que repousa na Assembleia local; e isso, em vista da necessidade de expô-lo frente a práticas invasivas e errôneas que desconsideram os princípios. Mas necessitamos, por outro lado, dizer algo de enorme importância, principalmente para um tempo de ruína tão grande como o que atravessa hoje a cristandade. E a esse respeito, além de confirmarmos o princípio que expusemos neste artigo, também reconhecemos que em dia de ruína da cristandade professante, a autoridade para julgar e agir reside mais na própria Palavra de Deus do que naqueles que a professam. Isto se vê bem desenvolvido na segunda epístola de Paulo a Timóteo e inclusive nas mensagens às sete Igrejas que encontramos em Apocalipse. A Igreja ou Assembleia em seu estado normal é a expressão da autoridade de Cristo por meio da Palavra de Deus, no sentido que ela é chamada a julgar e conduzir-se de acordo com esta bendita Palavra.

Mas em um tempo de grande ruína, quando a Palavra de Deus é deixada de lado, o indivíduo que se submete a ela, é o princípio de juízo que pode discernir o estado daquela que pretende ser a Assembleia de Deus. Quando a verdade é abandonada, e o que professa ser a Assembleia a deixa de lado, o próprio fiel tem maior autoridade para julgar o estado das coisas pela Palavra. Isto não quer dizer que ele substitua a autoridade administrativa da Assembleia, mas o juízo, conforme Deus, está ali onde se age conforme a verdade. Por isso, diante da grande desordem dos Coríntios, Paulo pôde julgar em seu espírito, segundo Deus, o caso de imoralidade, antes que a Assembleia o fizesse. Enfim, em seu estado normal, a Assembleia julga pela Palavra, na ruína, a Palavra julga o que professa e pretende ser a Assembleia.

“Conjuro-te, pois, diante de Deus, e do Senhor Jesus Cristo, que há de julgar os vivos e os mortos, na sua vinda e no seu reino, Que pregues a palavra, instes a tempo e fora de tempo, redarguas, repreendas, exortes, com toda a longanimidade e doutrina. Porque virá tempo em que não suportarão a sã doutrina; mas, tendo comichão nos ouvidos, amontoarão para si doutores conforme as suas próprias concupiscências; E desviarão os ouvidos da verdade, voltando às fábulas” (2 Tm. 4:1-4).

R. Guillen